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O “julgamento tributário da década” e o futuro da advocacia contenciosa fiscal

Publicado originalmente em março/2017, por Matheus Bueno de Oliveira e Diego Monnerat Cruz Chaves

Como amplamente noticiado, recentemente o Supremo Tribunal Federal (“STF”) definiu que o ICMS não pode ser incluído na base de cálculo do PIS e da Cofins, no que alguns passaram a se referir como o “julgamento tributário da década”.

Talvez não haja exagero. O caso, julgado sob o rito de repercussão geral, interessa a inúmeros contribuintes e, ao que tudo indica, trará impactos financeiros expressivos aos cofres públicos. Houve também um prolongado suspense criado pela demora na apreciação em definitivo da tese (foram quase vinte anos de espera no tribunal). Por fim, o entendimento majoritário acabou criando um precedente que alimentará outras teses tributárias.

Resumo do julgado

Há muito, os contribuintes discutem a possibilidade de as contribuições PIS e COFINS, que incidem sobre as receitas das empresas, deixarem de considerar em sua base o valor do ICMS, como sempre exigido pelo fisco. Em apertada síntese, o argumento é de que, se as contribuições incidem sobre o faturamento das empresas, não seria lícito exigí-las sobre o ICMS, que é uma receita do Estado, meramente arrecadada pelo particular e repassada aos cofres públicos.

Exemplificando: como por convenção o ICMS incide “por dentro” (faz parte do preço), uma nota fiscal de venda de mercadorias divide o preço total de R$100,00 entre valor do ICMS (18%=R$18,00) e valor da mercadoria propriamente dita (saldo de R$82,00). A intenção é recolher as contribuições apenas sobre os R$82,00, bem como recuperar tudo o que foi pago a maior no passado (respeitado o prazo legal de cinco anos desde a distribuição da ação). No cerne da tese, além da discussão do conceito de receita, vislumbra-se uma questão crucial para muitos outros processos, mais adiante comentada: poderia haver a incidência de tributo sobre tributo?

Pois bem. A tese andava mal nos tribunais e era inclusive desacreditada por muitos tributaristas, mas em 2007, em um julgamento relativamente rápido (RE 240.785/MG), que foi interrompido por um pedido de vistas, seis ministros do STF deram uma surpreendente reviravolta favorável ao contribuinte. Embora ainda não formalmente finalizado o julgamento, a maioria então formada (seis a um) garantiria a vitória dos contribuintes na corte mais alta do país, gerando um precedente perigoso aos cofres públicos.

Enquanto o processo ficou suspenso pelo pedido de vistas, a União Federal manobrou distribuindo uma raramente vista Ação Direta de Constitucionalidade (“ADC”), no intuito de reiniciar o julgamento do mérito e poder reverter a maioria formada. Apenas em 2012 a corte resolveu de fato terminar o julgamento do RE em vez de apreciar a ADC 18. A vitória do contribuinte foi confirmada, mas, reconhecendo a importância do tema, definiu-se que o veredicto ali só valeria entre as partes. O precedente que todos aguardavam teria de vir de um julgamento com manifestações de todos os Ministros da Corte (alguns que votaram em 2007 já haviam se aposentado em 2012). Mais alguns anos de suspense.

Enfim, nas sessões de julgamento de 9 de março e 15 de março p.p., o STF finalmente decidiu que o ICMS não pode ser considerado na base de cálculo do PIS e da COFINS, confirmando o entendimento de 2012. O placar final (RE 574.706) foi de seis votos favoráveis ao contribuinte, com prevalência do voto da relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, acompanhada pelos ministros Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello. A divergência foi inaugurada pelo ministro Edson Fachin, sendo acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes.

Modulação: o risco de ganhar, mas não levar

Embora tenha havido vitória do contribuinte, uma questão essencial ainda não foi analisada pela Suprema Corte: a possibilidade de “modulação” dos efeitos da decisão. A lei permite que, em casos nos quais a declaração de inconstitucionalidade de lei represente risco à segurança jurídica ou houver excepcional interesse social, o STF possa “modular” seus efeitos, restringindo sua aplicação.

No caso, dado o impacto para os cofres públicos (perda de arrecadação futura e obrigação de ressarcimento dos recolhimentos indevidos do passado), a modulação é esperada. A Fazenda Nacional já requereu, na sustentação oral no dia do julgamento, que os efeitos da decisão só passem a valer a partir de janeiro de 2018, mas o pedido só deve ser apreciado quando forem julgados os embargos (que sequer foram opostos ainda).

Ou seja, é possível que, mesmo tendo reconhecido a inconstitucionalidade de se recolher PIS e COFINS sobre ICMS, o STF defina que os valores já pagos não são restituíveis, para evitar dano exagerado ao Erário.

Contudo, como nem o STF pode violar o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, aqueles contribuintes que já tiverem ingressado com ações requerendo o ressarcimento devem ser protegidos. A questão em relação a estes é: qual a data de corte? Até quando deve ter sido distribuída a medida judicial para se garantir o direito ao crédito?

O STF já modulou outros julgados de diversas maneiras, mas, em sua maioria, de acordo com as expectativas do contribuinte, resguardou o direito daqueles que ingressaram com ações até a data do julgamento de inconstitucionalidade (ADI 4.167 e RE 559.943). Houve outros casos em que se garantiu a eficácia de ações ingressadas até a data da publicação do acórdão de mérito (ADIs 3.601 e 2.791). Por fim, em pelo menos uma instância se adotou como data de corte a da edição de súmula vinculante oriunda do julgamento (RE 500.171).

Desse modo, tudo leva a crer que o direito de repetição ou compensação dos valores pagos indevidamente nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação pelo contribuinte será garantido àqueles que já tinham ações distribuídas quando do julgamento do RE 574.706.

Às empresas que ainda não possuem ações, temos recomendado resguardar seu direito imediatamente. Embora haja o risco de modulação em relação ao passado, conservadoramente reputamos válida a iniciativa, que de qualquer forma terá validade para fatos geradores futuros.

Impactos para contribuintes que já possuem ações próprias

Levando-se em consideração a importância da discussão e o tempo que o STF levou para julgar a questão, diversos contribuintes distribuíram medidas judiciais anteriormente ao final do julgamento, com intuito de resguardar seus direitos.

Com relação a estes, embora tenha havido resguardo quanto à modulação (v. supra), a decisão do STF não significa que as ações estão automaticamente encerradas. A vitória no mérito é certa, pois os demais magistrados de todo país estão vinculados ao entendimento firmado, mas o processo individual deve seguir seu trâmite, passível de ser acelerado agora, naturalmente.

E os pagamentos futuros de PIS e COFINS?

O Procurador Geral da Fazenda afirmou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo que o entendimento fazendário é de que não haveria qualquer efeito imediato da referida decisão, sendo certo que a cobrança do PIS e da COFINS com a inclusão do ICMS nas suas respectivas bases de cálculo seguirá até o trânsito em julgado do processo.

Nesse ponto, os contribuintes que ajustarem sua rotina à decisão do STF sem autorização judicial concreta para tanto estará assumindo o risco de autuação, a qual iniciaria contencioso novamente calcado na tese. Ao menos até que haja expresso reconhecimento da tese pelo fisco, os procuradores e fiscais seguirão refutando-a.

Nesse ponto, cabe também mencionar a questão quanto à aplicabilidade da tese para o período posterior à Lei nº 12.973/2014, que teria trazido previsão expressa da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS. Essa matéria foi amplamente abordada durante o julgamento, especialmente durante o voto do ministro Dias Toffoli, que foi rebatido pelos ministros vencedores. De qualquer forma, conservadoramente, vale aguardar a formalização do acórdão para averiguar se os votos expressamente reconhecem a tese válida mesmo após a inovação legislativa. Há inclusive a possibilidade de a Fazenda Nacional tentar segregar a matéria e buscar fixar a aplicabilidade da decisão do STF apenas para o período anterior à Lei nº 12.973, o que poderá gerar novas ações por parte dos contribuintes.

Impossibilidade de cobrança de imposto sobre imposto?

Esclareça-se, também, que a decisão em análise poderá impactar outras teses, como a não inclusão do ISS na base de cálculo do PIS e da COFINS, ou a definição da base de cálculo da contribuição substitutiva da folha, prevista na Lei nº 12.546/2011.

Embora haja certo entusiasmo com o tema, o prognóstico dessas teses não está garantido, até mesmo porque o próprio STF já reconheceu a possibilidade de inclusão de impostos em suas próprias bases. O julgamento deste mês definiu que a receita do contribuinte não contemplaria o ICMS, embora este seja parte do preço da mercadoria. Não houve afirmação expressa e irrestrita de que tributos não podem ser base de outros tributos.

O futuro da advocacia tributária contenciosa

Este julgamento pode ser o último caso tributário de proporções tão abrangentes, com tantos contribuintes afetados e valores representativos. Pode significar a última das chamadas grandes teses tributárias.

A recuperação de créditos fiscais relevantes, com discussões meramente de mérito, tende a enfraquecer. O governo dificilmente assumiria o risco de deixar outro tema ganhar essa magnitude por aguardar tanto tempo no STF. Possivelmente, os melhores resultados serão obtidos por uma advocacia tributária fruto de trabalhos mais estratégicos e personalizados, com conhecimento dos negócios da empresa e avaliações calcadas em planos de negócios e com semântica financeira e contábil. Discussões até hoje exclusivas de conselhos administrativos como o CARF tendem a avançar ao judiciário.

Por outro lado, independentemente da maneira como se dará a modulação de seus efeitos, sabe-se que o impacto da decisão será considerável para os cofres públicos e que há uma grande probabilidade de o governo tomar outras medidas para compensar os valores que deixarão de ser recolhidos (como em 2013, quando o mesmo STF reconheceu a não inclusão de impostos na base de cálculo do PIS-COFINS Importação, ocorrendo em seguida aumento de alíquotas por lei). A já prometida reformulação do PIS e da COFINS fatalmente levaria esse novo racional em consideração. Tradicionalmente, essas reformas abastecem os tribunais de novas teses, ainda que por base os princípios sejam os já avaliados pelas cortes.