Direto ao ponto: Entre as modernidades da reforma tributária aprovada no fim de 2023 estava o prometido rápido ressarcimento de créditos tributários. A ideia sempre foi atrativa, pois evitaria seguirmos sofrendo com uma mazela tradicional de nosso sistema tributário, em que contribuintes se veem credores do Fisco em valores vultuosos, mas na prática amargam uma espera sem fim, seja pelo ressarcimento administrativo, adiado e muitas vezes controlado a conta-gotas pela Administração Pública, seja pelo ressarcimento via precatórios, com suas condenáveis e sucessivas moratórias. Nada mais justo se permitir o fim dessa ineficiência, especialmente considerando que o cerne da reforma seria a substituição de diversos tributos por IVAs amplos, de creditamento geral e, portanto, passíveis de gerar ainda mais ativos em favor dos particulares. Na prática, contudo, a regulamentação ora em análise no Congresso mostra que as vantagens do ressarcimento podem ser ofuscadas pelo controle total do caixa das empresas pelo Fisco. Esse perigo fica evidente na nova figura do split payment, nome a que todos passaremos a nos acostumar, para o bem e para o mal.
Créditos fiscais amplos de CBS e IBS = maior probabilidade de saldos credores
Entre as bandeiras da reforma tributária do consumo está a substituição de cinco tributos antigos por um sistema moderno e justo, em que a multiplicidade de regulamentos estaria sendo substituída por um sistema único, reduzindo litígios e insegurança. Tal sistema está alicerçado na criação de dois Impostos de Valor Agregado (IVAs) que por um lado oneram praticamente quaisquer operações de fornecimento de bens e serviços e de outro permite o creditamento sobre a aquisição de quaisquer suprimentos.
Isso significa que, em tese e na prática, continuariam a existir situações em que o contribuinte se veja credor do Fisco, pois o saldo de créditos apurados na não cumulatividade desses novos IVAs pode vir a superar os débitos registrados num mesmo período de apuração (a rigor, mensalmente).
De fato, tal qual com os atuais e condenados ICMS, IPI e PIS/COFINS, já se sabe que os contribuintes eventualmente apurarão saldos credores nos novos IVAs – Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, a ser destinada à União Federal) e IBS (Imposto sobre Bens e Serviços, cujo produto arrecadado será destinado ao Estado e ao Município de destino no consumo onerado). Isso tende a ser ainda mais material se considerarmos que a alíquota desses tributos tende a superar a alíquota tradicional daqueles por eles substituídos.
Assim, uma sistemática mais moderna de ressarcimento seria, se não ao menos desejável, necessária. Considerando que os novos IVAs passarão a ter regulamento único em âmbito nacional, o legislador agarrou essa oportunidade para prever algo nesse sentido.
Teoria: controle centralizado da arrecadação permitiria proteger os particulares de finanças públicas desestabilizadas
Hoje, um crédito acumulado de ICMS pode se ver na interminável espera pela autorização do fisco para seu ressarcimento. Uma restituição de tributos federais pode não raro igualmente demandar esforços, incluindo a provocação do judiciário ou mesmo a emissão de um precatório.
Para os novos CBS e IBS, previu-se um sistema de compensações inédito, não mais atrelado a créditos destacados em notas fiscais (NFs) e/ou pertinentes a compras registradas como essenciais ao negócio.
Como um órgão central estará a cargo da arrecadação e distribuição dos novos tributos (o inédito Comitê Gestor), previu-se então que a liberação de créditos estará alheia a dificuldades orçamentárias dos entes federados, sendo operacionalizado por esse mesmo órgão centralizador, que poderia instantaneamente honrar com os direitos de contribuintes credores. Bom demais para ser verdade?
Prática: split payment em ação
A reforma tributária manteve as clássicas formas de liquidação das obrigações tributárias: pagamento com caixa pelo devedor (o fornecedor do bem ou serviço onerado pelo CBS/IBS); compensação do valor devido com créditos (próprios, pelo mesmo devedor/fornecedor); retenção por pagadores/adquirentes. Por fim, foi acrescentado o agora famoso split payment, que equivale ao recolhimento na liquidação financeira, algo semelhante àquele último método.
A ideia dos autores da regulamentação da reforma (leia-se: o Fisco Federal) seria reorganizar a ordem pela qual as diferentes espécies de quitação ocorreriam. Hoje, exceto quando há retenção na fonte, o valor do tributo devido pelo vendedor é todo ele sujeito a sua livre opção entre recolhimento em caixa ou compensação, mesmo que ele possua créditos passíveis de assim serem utilizados.
Agora, a ideia exposta no Projeto de Lei Complementar 68 implicaria as seguintes hipóteses:
Modalidade A) Compensação de créditos: dentro do mesmo mês, os débitos (aplicação das alíquotas de CBS e IBS sobre o fornecimento = as vendas de mercadorias e serviços) são automaticamente compensados com créditos pertinentes a compras ocorridas no mesmo período;
Modalidade B) Split Payment: exceto quando o preço é recebido via cheque ou dinheiro, o valor entregue pelo comprador será obrigatoriamente segregado pela instituição de processamento de pagamentos, que destinará a parcela pertinente ao IBS e à CBS ao Comitê Gestor. Percebe-se alguma similaridade com a antiga retenção, onde o adquirente desconta do vendedor uma parcela do preço, responsabilizando-se por seu repasse ao Fisco. Mas nota-se que agora o montante envolvido se refere à totalidade de outros tributos e é praticamente automática, pois inescapavelmente atrelada ao movimento financeiro de liquidação da obrigação.
Modalidade C) Recolhimento pelo adquirente: apenas se não viável o split payment, o comprador pode ser responsável por recolher os tributos em nome do vendedor.
Modalidade D) Pagamento pelo Fornecedor: o que hoje era a regra passaria a ser a exceção. Apenas quando, até o dia anterior ao vencimento do tributo, este não tiver sido todo liquidado pelas hipóteses anteriores é que o próprio contribuinte (vendedor/fornecedor) providenciará o recolhimento do saldo devedor ainda em aberto.
Assim, as compensações com créditos da não cumulatividade, em vez de atreladas a livros de apuração de NFs de entrada ou compras qualificadas como insumos, como ocorre hoje, por exemplo, passariam a ser registradas num débito e crédito financeiro, eis que o Comitê Gestor teria à sua disposição o controle de todo fluxo de débitos e créditos do contribuinte, uma espécie de conta corrente visando sempre o saldo zero (cobrando-se saldos devedores, mas restituindo-se com celeridade saldos credores).
Veja-se o exemplo apresentado pelo próprio governo:
Usando as premissas acima, acaso o vencimento do tributo devido pelo Atacadista (R$26) ocorra depois que o preço de venda (R$126) tenha sido quitado pelo Varejista, o split payment significaria que o tributo já teria sido destinado ao governo. Logo, o Atacadista (em tese) não precisaria recolher ele mesmo o tributo, pois receberia apenas R$100 do seu cliente Varejista. A instituição de pagamento desmembraria (split) o pagamento de R$126, destinando R$100 ao vendedor Atacadista e R$26 ao Comitê Gestor. A conta corrente de apuração de CBS/IBS do Atacadista registraria um saldo devedor igual a zero, pois o débito (R$26) seria compensado com o crédito do pagamento na liquidação (parcela de R$26 do split).
Já no caso de o vencimento do tributo devido pelo Atacadista ocorrer antes de o Varejista liquidar o preço, o Atacadista teria de ele mesmo realizar o recolhimento dos R$26. Quando o Varejista for pagar o preço de R$126, uma de duas coisas ocorreria: ou o sistema exigiria o split e o Atacadista novamente receberia apenas R$100, tendo oportunamente (instantaneamente, em tese) o direito a ressarcir-se de R$26 (eis que o mesmo tributo teria sido pago duas vezes, quando da quitação no vencimento por ele mesmo e também quando do posterior pagamento pelo Varejista, via o split payment), ou, no momento em que o Varejista desembolsasse os R$126, o sistema alertaria a instituição de pagamento de que o recolhimento já teria ocorrido pelo próprio Atacadista no vencimento anterior, hipótese em que todos os R$126 saídos do Varejista seriam destinados ao Atacadista.
E quanto ao tributo devido pelo Varejista? Ele inescapavelmente seria de R$13, que é a diferença entre o débito de R$39 (26% sobre o preço de R$150) e o legítimo crédito de R$26 (26% sobre o preço de compra de R$100, justamente o valor devido pelo Atacadista). Contudo, a depender dos prazos de recolhimento do tributo e de vencimento dos preços de venda entre Atacadista e Varejista e entre Varejista e Consumidor Final Adquirente, o fluxo de caixa pode ser substancialmente diferente. Vejamos:
Na melhor das hipóteses, a venda pelo Varejista e sua quitação pelo Consumidor Final Adquirente estaria ocorrendo após a compra entre Varejista e Atacadista e respectivo pagamento do IVA nesta primeira etapa. Isso significaria que os R$26 devidos pelo Atacadista já estariam pagos e registrados no sistema, seja pelo recolhimento via split payment (divisão dos R$126 pagos pelo Varejista), seja pelo recolhimento pelo próprio Atacadista no vencimento do tributo (se ocorrido antes daquele pagamento). Assim, quando o Varejista realiza sua venda e seu débito de IVA (de R$39) é quitado, seja via o split do pagamento pelo Consumidor Final Adquirente, seja pelo vencimento do tributo (se ocorrido antes desse pagamento), o sistema já acusaria o crédito de R$26 decorrente da etapa anterior e apenas os R$13 efetivamente devidos (justamente o Imposto sobre o Valor Agregado nesta etapa da cadeia) seriam desembolsados e recolhidos aos cofres públicos – em tese, apenas R$13 dos R$189 pagos pelo Consumidor Final Adquirente seriam destinados aos cofres públicos, entregando-se R$176 ao Varejista, mas na prática o sistema do split deve enviar todo o IVA de R$39 ao Comitê Gestor para imediatamente reconhecer-se um crédito de R$26 a favor do Varejista).
Contudo, dada a flexibilidade do mercado, não seria difícil ocorrerem cenários em que o IVA da última etapa (Varejista – Consumidor Final Adquirente) venha a ser recolhido ao mesmo tempo ou mesmo antes do IVA da primeira etapa (Atacadista – Varejista), o que significaria que os contribuintes teriam de primeiro recolher valores aos cofres públicos para apenas depois ter seu crédito reconhecido e ressarcido.
Eis um exemplo dessa situação:
Acaso o Varejista (última etapa/venda) receba seu preço de R$189 (R$150 + IVA de R$39) do Consumidor Final Adquirente, por qualquer meio que não cheque ou dinheiro, antes de quitar o preço de R$126 (R$100+IVA de R$26) devido por ele mesmo, Varejista, ao Atacadista, e antes do vencimento do tributo por ele mesmo (Varejista) devido, o pagamento realizado pelo Consumidor Final Adquirente será processado pela instituição financeira de intermediação, que realizaria obrigatoriamente o split payment, mas agora entregando todo o IVA de R$39 ao governo, eis que ainda não haveria qualquer crédito decorrente de pagamentos anteriores a esta etapa registrados no sistema. Apenas o saldo de R$150 (preço do bem ou serviço) seria entregue ao vendedor (Varejista).
Note-se, contudo, que neste instante o Varejista teria recebido apenas R$150 e ainda deve R$126 ao Atacadista (R$100 a título de preço pela mercadoria ou serviço propriamente dito e mais os R$26 do correspondente IVA). O resultado caixa líquido aqui seria de apenas R$24, o que evidencia restar o ressarcimento dos R$26 de IVA, que é um crédito legítimo do Varejista.
Mas esses R$26 só seriam destinados ao Varejista, satisfazendo seu fluxo de caixa, se e quando o sistema registrar sua quitação, seja no split do pagamento realizado por ele mesmo (Varejista) ao primeiro vendedor (Atacadista), seja pelo recolhimento realizado pelo Atacadista no vencimento do tributo, o que primeiro ocorrer.
[Ademais, sem exagerar, existe inclusive uma hipótese insólita, mas possível, de tanto a instituição de pagamento realizar o split do pagamento entre Varejista e Atacadista como este (Atacadista) recolher o mesmo IVA, que por sinal também já teria sido recolhido pelo Consumidor Final Adquirente no primeiro pagamento (em ordem cronológica) do exemplo (pagamento ao Varejista). Seriam três recolhimentos do mesmo IVA, gerando ao Varejista o direito a ressarcir-se duas vezes (uma pelo legítimo crédito e a outra pelo pagamento em duplicidade, no split ou no recolhimento do fornecedor).]
Como é natural em um imposto e valor agregado, no exemplo acima o Consumidor Final Adquirente, que é a última fonte de todos os recursos que alimentam os elos anteriores da cadeia (Atacadista e Varejista), estaria entregando ao governo todo o IVA da cadeia (R$39), e nos momentos posteriores, quando vencido o IVA do Atacadista (R$26), ou pago o preço pelo Varejista ao Atacadista (R$100 + R$26), é que o crédito da etapa intermediária (Varejista) nasceria, de modo que ele (Varejista) venha a economicamente arcar apenas com o que efetivamente deve (R$39 – R$26 = R$13).
Ou seja, no exemplo acima, somente ao final dos eventos (último vencimento / pagamento do IVA) o sistema registraria o crédito pertinente àqueles R$26 em favor do único contribuinte que, neste exemplo, é efetivamente afetado pela não cumulatividade (eis que aqui tanto o Atacadista como o Consumidor Final Adquirente não possuem créditos a seu favor).
Isso já evidencia uma diferença brutal no fluxo de caixa dos contribuintes que até hoje estavam acostumados a registrar créditos de ICMS e IPI na entrada das mercadorias (e não no seu pagamento aos fornecedores, ou na quitação por estes do imposto devido), ou a creditar-se de PIS/COFINS ordinariamente a 9,25% (independentemente do regime a que sujeito o fornecedor e sem qualquer condição atrelada a adimplência dele perante o fisco).
Mas não é só!
Perigos do Split payment
Como visto acima, sob a promessa de modernidade e controle centralizado de créditos pertinentes a tributos devidos a três esferas da Federação (União, Estados/DF e Municípios), criou-se um sistema inédito com arrecadação centralizada e oportuna pulverização dos valores devidos a cada ente, concomitantemente a um controle financeiro de créditos e débitos de IVA.
Se isso promete aos contribuintes um atalho contra as atuais filas intermináveis para realização de créditos (tome-se o ICMS como exemplo maior disso), a entrega veio junto com uma realidade em que os contribuintes estarão amarrados ao recolhimento efetivo do imposto, o que significa essencialmente que (i) eles possivelmente nem verão o dinheiro do IVA destacado em suas notas fiscais (que passará a ser desviado para o governo no split payment operacionalizado pela instituição de pagamento); e (ii) só terão o crédito da etapa anterior se e quando o respectivo IVA tiver seu recolhimento registrado.
A primeira consequência não é algo necessariamente pior do que temos hoje, pois é comum o fluxo de recebimentos superar o prazo de vencimento de tributos. Mas a vinculação do crédito ao pagamento financeiro, e não mais a NF, é uma novidade impactante.
Mais que isso, a regulamentação aproveita-se do momento para inserir uma outra novidade, esta sim maléfica ao particular: ainda que este tenha saldo credor numa operação ou período, este só seria ressarcido em prazos pré-determinados (que já se mostram anos luz distantes da prometida instantaneidade, podendo chegar a 270 dias), se o contribuinte não possuir outros débitos perante o Fisco.
No passado não muito longínquo o Fisco Federal tentou operar algo semelhante, condicionando o ressarcimento de créditos a uma compensação de ofício, no que foi repreendido pelo Judiciário. Agora, esse mesmo mecanismo está sendo maliciosamente inserido no sistema que foi até agora propagado como uma solução mágica favorável aos contribuintes.
Se usarmos apenas o exemplo recente da (felizmente) já falecida MP 1227, que subitamente retirou dos contribuintes o direito a ressarcimento de créditos de PIS/COFINS há décadas previstos, o que esperar da operacionalização dessa conta corrente que terá os mesmos autores de medidas como aquela?
Assim, a reforma tributária do consumo parece entregar uma redução na litigiosidade quanto ao creditamento de compras (pois acaba a ingrata qualificação de insumos hoje existente no PIS/COFINS, entre outras coisas), mas provavelmente vai inaugurar novos campos de batalha quanto ao ressarcimento, tendo o Fisco a agradável posição de retentor do caixa enquanto não resolvida a lide.
Direto ao ponto: até hoje convivemos com um sistema que expõe os particulares a fragilidades na economia do Ente arrecadador, seja ele União, Estado, Município ou Distrito Federal. Não raro, ativos valiosos constam dos registros fiscais e contábeis das empresas, mas acabam sendo objeto de contingenciamento pela notória dificuldade e demora em sua realização perante o fisco responsável. Por outro lado, tradicionalmente o creditamento na não cumulatividade sempre esteve pouco ou nada dependente da adimplência de fornecedores perante o Fisco, eis que tanto no mais antigo sistema do “imposto contra imposto”(ICMS e IPI) como no mais recente “base contra base”(PIS e COFINS) importava apenas o crédito pela entrada da mercadoria ou despesa incorrida. Ou seja, o destaque na Nota Fiscal de compra ou a natureza da despesa eram suficientes para o crédito da não cumulatividade (embora outras diversas dificuldades sempre existiram – o eterno conflito sobre o conceito de insumo é prova cabal disso). O split payment foi vendido como uma sistemática para se operacionalizar um sistema moderno e eficiente, em tese tirando o contribuinte do risco de sucessivos atrasos pelo ente arrecadador em devolver seu saldo credor. Contudo, na prática, sua regulamentação ainda em gestação já expõe pelo menos duas verdades inconvenientes: (i) as empresas terão de se acostumar com uma dinâmica menos eficiente do que a promessa de ressarcimento instantâneo, prejudicando seu capital de giro; bem como (ii) terão de se acostumar a controlar um novo sistema de crédito e eventualmente litigar sobre sua veracidade e suficiência.