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Ofício CVM opina sobre créditos judiciais tributários

Buscando cumprir seu papel institucional, ocasionalmente a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publica orientações de suas áreas técnicas para a elaboração das demonstrações contábeis das companhias sob sua autoridade. Em 29 de janeiro passado, após certo período sob audiência pública, foi divulgado o Ofício Circular n. 01/2021, elaborado pela Superintendência de Normas Contábeis e de Auditoria (SNC) e pela Superintendência de Relações com Empresas (SEP), componentes da autarquia.

O ofício é pertinente ao exercício social de 2020 e traz esclarecimentos inclusive sobre o inescapável tema COVID-19, mas está alicerçado em princípios que extrapolam aquele período ou esse episódio. Sem ousar exageros, podemos supor que as orientações mais impactantes podem estar ligadas ao item 7 da publicação: “créditos fiscais”.

Risco: reconhecimento prematuro (ou excessivo) de créditos

A CVM demonstra preocupação com o fato de muitas entidades estarem divulgando o reconhecimento de créditos decorrentes de vitórias em disputas tributárias, alguns de até bilhões de reais, quando a complexidade do tema jurídico e o conservadorismo que cerca a doutrina contábil podem indicar um risco em tal conduta.

Ainda que inicial e expressamente reconheça sua incompetência técnica e legal para a interpretação tributária, a autoridade faz questão de ressaltar sua função de guardião da fidelidade das informações financeiras, e está apreensiva com a possibilidade de resultados estarem sendo indevidamente majorados por companhias que ignoram o potencial conflito com autoridades fazendárias quanto à interpretação de precedentes jurisprudenciais.

Os conflitos poderiam se dar tanto no que se refere à efetiva existência do crédito propriamente dito (haver ou não haver o direito), quanto em sua extensão (há uma vitória, mas sua mensuração estaria indevidamente exagerada). Ainda que existente e líquido, mesmo o momento em que o ativo seria reconhecível gera debates.

A verdade é que, não raro, advogados e consultores tributários tem sua remuneração atrelada ao sucesso financeiro do seu trabalho. O problema é que, em vez de tão somente alinhar os interesses da companhia com o de seus fornecedores, tal mecânica pode dar margem a algum otimismo exagerado na interpretação da definitividade de uma decisão ou na mensuração de seus efeitos. Mesmo internamente existem incentivos claros para que a administração da companhia entregue resultados trimestrais cada vez melhores, o que é salutar apenas até certa dose.

A autarquia dá nome aos bois: sua preocupação está focada em créditos tributários ligados a duas teses pertinentes às contribuições sociais PIS e COFINS, cujos julgamentos representaram vitórias relevantes dos contribuintes, mas podem ainda demandar algum grau de maturação para serem efetivas.

Tese 1: conceito de insumos para fins de não cumulatividade (origem: STJ)

A primeira tese tributária mencionada no ofício 01/21 se refere à discussão do conceito de insumo para fins de não cumulatividade das contribuições. Em resumo, a legislação permite que alguns contribuintes (numericamente, a menor parcela deles, mas justamente a de maior arrecadação) se apropriem de créditos dedutíveis do PIS e da COFINS devidos mensalmente. Tais créditos são calculados sobre os valores dos gastos com mercadorias e serviços utilizados como insumo na atividade do contribuinte, e a discussão está centrada justamente em conceituar o que deve entender por “insumo”. O fisco tem uma interpretação tradicionalmente restritiva, às vezes impondo uma proximidade a nível molecular entre o gasto e o produto ou serviço decorrente para autorizar o crédito (típico exemplo de matérias primas). Os contribuintes defendem uma leitura econômica, mais abrangente, que permitiria que custos indiretos e despesas gerais comerciais também gerassem créditos.

Há 2 anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o tema em um precedente com efeitos vinculantes sobre os demais tribunais inferiores. Acontece que, embora o caso venha desde então sendo utilizado como parâmetro no tema, ele ainda abre muita brecha para interpretações e, portanto, para futuras disputas com o fisco.

Tese 2: conceito de receita não contempla ICMS na venda (origem: STF)

No ofício 01/21 a CVM também se manifesta sobre a chamada “tese do século”, que já fora objeto do Ofício Circular CVM/SNC/SEP 01/2020, de mesmo escopo, há um ano. A disputa ganhou esse apelido no mercado jurídico dado seu potencial de impacto. De acordo com a tese, o conceito de receita, base de cálculo de PIS/COFINS, não deve contemplar os valores que as empresas cobram de seus clientes a título de ICMS (o imposto estadual sobre circulação de mercadorias), pois este seria um valor que, cobrado dos clientes junto ao preço, ingressaria na vendedora provisoriamente, eis que esta meramente o repassa aos cofres públicos estaduais.

O problema aqui é que, embora o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) tenha dado ganho de causa aos contribuintes em março de 2017 (há praticamente quatro anos), ainda há alguns limites importantes a serem esclarecidos, pois a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) opôs um recurso requerendo que a Corte esclareça se o ICMS a ser descontado da base de PIS/COFINS seria o destacado na nota fiscal, ou o que é recolhido depois de abatidos créditos do mesmo imposto; a PGFN também requereu a chamada modulação de efeitos, para que o veredicto só seja aplicado para o futuro.

A (justa) preocupação da CVM decorre da relevância dos créditos fruto de ambas as teses, sua complexidade e timing de realização

O fato de ambos os temas abordados pela CVM se referirem a PIS/COFINS não é surpresa, pois estes são tributos federais onipresentes (cobrados de qualquer empresa, independentemente de seu setor, localização ou porte), constantes (sua base de cálculo é a receita mensal do contribuinte, sendo então devidos mesmo por quem registra prejuízo) e valiosos (suas alíquotas chegam facilmente a ultrapassar a margem do negócio e representam boa parte da arrecadação). Acima de tudo isso, temos uma regulamentação muito complexa, uma verdadeira usina de debates.

Para piorar, via de regra existe um natural e considerável descompasso entre a assunção (consciente ou não) do risco e sua materialização: tratando-se de créditos ligados a PIS/COFINS, a maioria das empresas opta por se valer da chamada compensação, em que tais ativos são utilizados como moeda para quitar outros tributos federais vincendos, o que pode ocorrer por meses ou anos, até que exaurido aquele saldo credor. Contudo, a Receita Federal do Brasil tem até cinco anos para auditar cada compensação, de modo que sua eventual discordância com todo ou parte dos valores só geraria uma cobrança muito tempo depois. Ou seja, o reconhecimento agora nas demonstrações de 2020 de um suposto resultado positivo poderia ser desmascarado até 2025, podendo iniciar novo contencioso sobre a validade e extensão daquele ativo por mais tempo ainda.

A consequente preocupação da CVM: otimistas quanto aos efeitos do precedente do STJ, companhias podem estar lançando créditos relevantes a título de insumos em seus balanços, imprudentemente ignorando que a análise de tal atributo é casuística e que a decisão precedente não é um cheque em branco para qualquer interpretação. Da mesma forma, e talvez com mais vigor, a autarquia se preocupa com a divulgação de números extraordinários decorrentes do julgado do STF, os quais podem estar simplesmente assumindo uma decisão ainda pendente como algo certo e irreversível.

No pior dos cenários, confirmado que a administração do negócio agiu precocemente ou foi injustificadamente otimista no reconhecimento de um ativo posteriormente rechaçado pelas autoridades, a conduta indicaria uma informação enganosa ao mercado que materializar-se-ia inclusive em dividendos e remuneração a executivos sem lastro, pois decorrentes de resultados artificiais.

Variáveis a considerar pelas companhias

O ofício chega a soar ameaçador quando sugere que os afetados teriam uma oportunidade de voluntariamente revisitar e retificar informações já divulgadas sem que haja a necessidade de interferência do órgão para imprimir a cautela necessária às demonstrações. Acreditamos, contudo, que não haverá dificuldade adicional para as companhias que diligentemente já aferiram a liquidez e certeza de seu direito quando da decisão pelo seu reconhecimento.

A chave está em antecipar potenciais conflitos. Simples, mas não fácil. Talvez a primeira tarefa seja distinguir o risco de o crédito ser contestado pelo fisco do risco dessa contestação efetivamente ser mantida após análise administrativa ou judicial. Há um ambiente de combate quase que natural entre autoridades tributárias e contribuintes, mas não é a naturalidade desse litígio que importa, mas sim as chances de sucesso.

Para estas, importa apenas a certeza do direito invocado, que, portanto, não pode depender de eventos ou atos de terceiros para a entidade controlar os benefícios econômicos a serem por ele originados. Essa segurança deve ser vislumbrada na existência do direito invocado e no seu correto dimensionamento e capacidade de aproveitamento (liquidez).

Segurança dos créditos da tese sobre insumos na não cumulatividade

No que toca à primeira tese, a CVM reconhece o casuísmo da aferição do que seriam insumos para fins de creditamento na não cumulatividade de PIS/COFINS. Afinal, como a mesma despesa pode ou não ser tida como essencial a depender da atividade do contribuinte envolvido, uma decisão judicial própria reconhecendo aquele caráter seria o ápice da segurança. Quando isso inexiste, o papel de assessores jurídicos é primordial para imprimir confiança ao crédito. Naturalmente, estes darão maior peso quando os créditos constarem de precedentes idênticos à situação enfrentada, ou mesmo soluções de consulta posteriores ao julgado do STJ. No extremo oposto, indicando postura algo arrojada, teríamos companhias que com base em mera interpretação interna, sem autorização ou precedentes judiciais administrativos, apropriaram-se de créditos com base na tese da essencialidade dos insumos. A CVM comanda que, especialmente se suportada apenas por tais pareceres, a companhia abra em nota explicativa os critérios adotados, permitindo aos usuários condições de avaliar a que grau de risco a administração da companhia decidiu se expor.

Segurança dos créditos referentes à exclusão do ICMS da base

No caso da tese quanto à exclusão do ICMS da base de PIS/COFINS, o alerta da CVM também reconhece a necessidade de se observar o caso concreto de cada companhia, mas parece ir além. Alertando para a existência de recurso pendente no precedente do STF, a autarquia indica que mesmo as companhias que obtiveram decisões definitivas (já transitadas em julgado em segunda instância) deveriam se assegurar da sua extensão, o que aparentemente não estaria ocorrendo, haja vista os tratamentos inconsistentes observados no mercado.

A pedra de toque é haver uma mensuração confiável, que, diferentemente da tese dos insumos, não pode ocorrer com base em precedentes, mas fundada apenas em ação própria, justamente porque o veredicto do leading case ainda há de ser finalizado pelo STF (no que concerne à possível modulação de efeitos e definição de “qual ICMS” seria excluído do conceito de receita).

O que a CVM se preocupa expressamente é com situações em que tenha havido reconhecimento de crédito relevante com base em decisão judicial que, embora transitada em julgado, seria ilíquida. Embora ela reconheça que cabe aos administradores, suportados por seus assessores jurídicos, a tarefa de mensurar confiavelmente o direito, alerta para o risco de reversão futura, chamando a atenção, ainda, para a conduta algo agressiva do fisco e da procuradoria, que vêm negando compensações e mesmo executando dívidas fundados na interpretação oficial da tese, ainda não referendada pelo Judiciário, mesmo quando há trânsito em julgado a favor do contribuinte.

Trocando em miúdos: a companhia possui decisão judicial transitada em julgado indicando expressamente que o ICMS a excluir é o destacado na nota fiscal? Uma resposta positiva indicaria exemplo típico de tranquilidade, no espectro mais conservador dos cenários possíveis. A nosso ver, variações desse cenário, ainda dentro dos limites aceitáveis da cautela que autorizaria o reconhecimento do ativo, seriam situações em que o pedido da petição inicial do processo e os fundamentos da decisão permitissem indicar aquela interpretação, ainda que o dispositivo (parte final da sentença transitada em julgado) não a contemple expressamente.

E a companhia que possui trânsito em julgado, mas este não detalha qual ICMS excluir? Acreditamos que a parcela inconteste, relativa ao ICMS recolhido (tese da PGFN) deva ser reconhecido, ficando a diferença dependendo do leading case inacabado. Contribuintes sem trânsito em julgado não tem autorização para reconhecer qualquer ativo relativo ao indébito, por mais confiante que estejam na tese, dado o caráter limitado do julgamento do STF. Estes últimos, se ingressaram após o julgamento de março de 2017 podem vir a ser afetados pela modulação, inclusive, havendo mais este argumento a favor do conservadorismo no caso.

Por último, veja-se: a possibilidade de futura ação rescisória com base numa eventual acolhida dos embargos fazendários, embora teoricamente seja também um risco, não deveria impedir o reconhecimento original do ativo para quem já possua trânsito em julgado.

Conclusões

Embora ambas as teses apresentadas pelos contribuintes tenham sido acolhidas pelo Judiciário, apenas sua ponderação individual para aplicação no caso a caso indicará a certeza e extensão do crédito decorrente a cada contribuinte.

Atuar como se o crédito fosse líquido e certo não reduz o risco deste vir a ser questionado. O fisco tem poderosas ferramentas e muito tempo para auditar a companhia e vir a exigir o que indevidamente aproveitado, com encargos financeiros consideráveis. A batalha jurídica em volta de uma compensação questionada pode ser inclusive mais penosa que a que deu origem ao crédito no primeiro lugar. Confirmado que houve o aproveitamento prematuro de um direito ainda incerto, o custo financeiro com encargos de mora e multas tributários é uma consequência natural, mas a CVM parece alertar que poderia interpretar a situação como um erro passível de outras sanções a administradores e auditores.

Por outro lado, também não seria razoável simplesmente esconder-se em um suposto conservadorismo e deixar de aproveitar o crédito já líquido e certo. Assim como recolher tributo a maior que o devido, atrasar a liquidação de créditos fiscais prejudica financeiramente a companhia e em última escala fere sua competitividade, coloca credores em risco injustificado e afeta negativamente a rentabilidade de investidores, representando algo passível de ser tido como um pecado na administração do negócio.