Direto ao ponto: O STJ não decidiu o mérito e, portanto, não alterou entendimento sobre incidência de IRRF sobre remessa de serviços técnicos ao exterior com base em tratado internacionais. Apenas decidiu que o TRF3 somente analisou duas possíveis qualificações jurídicas do rendimento (Lucros de Empresa; e Outros Rendimentos) decorrente da prestação de serviços técnicos e assistência técnica remetidos do Brasil para a Espanha, nos termos desse tratado. Segundo o STJ, existem outros dispositivos do tratado que deveriam ser analisados antes de qualificar o referido rendimento como Lucros de Empresa, dentre os quais: (i) Royalties com base no Artigo 12; (ii) Royalties com base na extensão feita pelo Protocolo aos serviços técnicos e assistência técnica; e (iii) Profissões Independentes com base no Artigo 14. Em razão dessa omissão hermenêutica, determinou o retorno dos autos ao TRF3 para que a questão fática (contrato de serviços de engenharia) fosse reanalisada à luz de todos os dispositivos do tratado considerados aplicáveis.
O STJ deu provimento ao Recurso Especial (REsp 1.759.081/SP) interposto pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) devolvendo o mérito relacionado às remessas feitas por pessoa jurídica sediada no Brasil para entidade sediada na Espanha e seu correto enquadramento no Acordo Contra a Dupla Tributação celebrado entre Brasil e Espanha – Decreto 76975/96 (“Tratado”) para que Tribunal Regional Federal da 3ª Região (“TRF3”) faça nova análise considerando as omissões alegadas no recurso.
Como o TRF3 examinou a matéria exclusivamente sob a ótica do Artigo 7º (Lucros das Empresas) do Tratado, as omissões acatadas pelo STJ foram referentes aos seguintes pontos: (i) artigo 12 (royalties) e (ii) item 5 do Protocolo.
De acordo com o REsp 1.759.081/SP, o TRF3 decidiu genericamente que os valores enviados ao exterior pela empresa Engecorps Engenharia S/A (sediada no Brasil) para a empresa Técnica Y Proyectos S.A (sediada na Espanha), em razão da prestação de serviços e assistência administrativa, devem ser enquadrados como “lucros das empresas” (Artigo 7º do Tratado), portanto, sujeitos à tributação exclusivamente no exterior (residência da empresa prestadora, i.e., Espanha), sem a incidência de imposto de renda retido na fonte (IRRF) no Brasil.
Para o STJ, antes de enquadrar referidas remessas no artigo 7º do Tratado, deve-se analisar a relação contratual entre as partes e suas características a fim de se verificar se os valores poderiam ser enquadrados em outros artigos, como royalties (Artigo 12), por exemplo, para então, residualmente, aplicar o artigo 7º – entendimento este correto segundo doutrina e jurisprudência especializada no exterior.
É importante, contudo, esclarecer que essa decisão do STJ não representa alteração de seu entendimento em relação à matéria de tributação sobre remessa de pagamentos de serviços ao exterior, mas tão somente pontua outros elementos ao debate, notadamente, verificar se a qualificação dos pagamentos feitos do Brasil para a Espanha se enquadrariam em outros artigos mais específicos que o Artigo 7º (genérico e, portanto, de aplicação residual nos tratados), tais como: (i) royalties – artigo 12; (ii) royalties – em razão do Protocolo; (iii) serviço profissional independente – artigo 14; ou, finalmente, (iv) lucros das empresas – artigo 7º.
A PGFN comemorou a decisão do STJ pois este foi o primeiro acórdão que efetivamente analisou outras qualificações jurídicas possíveis que não somente a antiga e ultrapassada discussão de qualificação entre Artigo 7º e Artigo 21/22 (Outros Rendimentos), antes tratada nos precedentes do STJ existentes sobre o tema (Copesul, Iberbrola e Alcatel).
Vale destacar que algumas notícias sobre o julgamento veiculadas na mídia afirmaram que o STJ havia mudado ou alterado seu entendimento sobre o tema, o que assustou os contribuintes. Todavia, conforme aqui examinado em detalhes, não houve qualquer mudança de entendimento da corte superior, mas tão somente observações corretas sobre outras possíveis qualificações jurídicas, nos tratados, quando houver pagamento por contraprestação de serviços técnicos e de assistência técnica sem transferência de tecnologia do Brasil para o país destino com o qual celebrou tratado internacional. É isso, inclusive, que alertamos em nosso artigo publicado no Intertax em 2017.
Com o objetivo de esclarecer a decisão do STJ no Recurso Especial n. 1.759.081, é importante uma análise minuciosa, para evitar conclusões erradas e alardes desnecessários.
Os fatos: a PGFN interpôs recurso especial após acórdão proferido pelo TRF3, pelo qual restou decidido que as remessas feitas por empresas sediada no Brasil ao exterior para empresa sediada na Espanha se enquadrariam no Artigo 7º do Tratado para evitar bitributação firmado entre os países e, como “Lucros de Empresas”, somente estariam sujeitos à tributação no país de residência (Espanha), não havendo tributação pelo IRRF pelo país de fonte (Brasil). A PGFN alegou que o acórdão recorrido deixou de apreciar dispositivos do Tratado Brasil-Espanha relevantes para a solução do litígio, dentre os quais: Artigo 12 (royalties) e item 5 do Protocolo anexo ao Tratado, cujo tratamento jurídico dados aos rendimentos provenientes dos serviços de assistência técnica e dos serviços técnicos é o mesmo que o de “royalties”, submetendo-se a tratamento específico que permite a retenção na fonte pelo Brasil em ambos os casos (qualificação pelo Artigo 12 do Tratado possibilita a tributação pelo Brasil e, consequentemente, o IRRF sobre tais remessas).
Nesse sentido, o STJ deu razão à PGFN por entender relevantes as omissões ocorridas, assim, dando provimento ao recurso especial.
Para o STJ, diante das possibilidades existentes no Tratado, antes de enquadrar tais remessas do Brasil para Espanha no artigo 7º, é necessário checar se a situação seria a de “serviços profissionais independentes” (artigo 14) ou se o contrato de “prestação de serviços sem transferência de tecnologia” se enquadraria o pagamento de royalties (artigo 12 e Protocolo), já que o Tratado tem dispositivos próprios para cada uma dessas hipóteses.
Inicialmente foi analisada a classificação de pagamento de royalties com base nos precedentes do STJ, a qual exige a existência de “fornecimento de tecnologia” em suas mais variadas formas. Assim, segundo o STJ, a legislação tributária classificou como royalties os rendimentos de qualquer espécie decorrentes do uso, fruição ou exploração direitos (Lei 4.506/64), sem que seja necessário a absorção de tecnologia para a caracterização do fato gerador. Conceituação que, segundo o STJ (págs. 11 e 15 do acordão), é compatível com a definição do artigo 12(“3”) do modelo da OCDE e dos tratados celebrados pelo Brasil
Adicionalmente, destacou que tratados podem vir acompanhados de protocolos que ampliam o conceito de royalties a qualquer espécie de pagamento recebido em razão da prestação de assistência técnica ou serviços técnicos, sendo irrelevante para a conceituação de royalties a existência de transferência de tecnologia, conforme transcrito:
“Outro ponto de relevo é que os tratados podem vir acompanhados de protocolos que estabelecem a ampliação do conceito de “royalties” a qualquer espécie de pagamento recebido em razão da prestação de assistência técnica e de serviços técnicos. Desse modo, haver ou não transferência de tecnologia é desinfluente para a aferição da norma tributária aplicável, já que irrelevante para a conceituação de “royalties”.” (pág. 16 do acórdão)
Nesse cenário, na hipótese de pagamento de royalties, a norma de incidência é o artigo 12 do Tratado Brasil Espanha, o que possibilita a tributação dos royalties à 15% pelo IRRF brasileiro.
Para o STJ, deve-se analisar se os pagamentos poderiam ser enquadrados no Artigo 14 (profissões independentes), destacando que no item 2 do artigo 14 há expressa menção à serviços de engenharia e que no Protocolo há extensão do conceito de profissões independentes para alcançar atividades exercidas por sociedades e não somente por pessoas físicas (pgs. 18/19 do acórdão).
Nos dois casos, royalties (Artigo 12) e profissões independentes (Artigo 14), como haveria tributação na fonte pelo Brasil, a Espanha deve conceder o crédito do IRRF recolhido no Brasil para seu residente, nos termos do artigo 23 – método da imputação ordinária, inclusive, concedendo matching credit (crédito presumido adicional ao recolhido na fonte).
Interessante notar que o STJ também chamou atenção para o possível uso do “hibridismo” pelo contribuinte (tax arbitrage), para checar se a classificação dos rendimentos em questão é similar nos dois países, já que, caso contrário, o contribuinte poderá utilizar o tratado de forma abusiva com o fim de se esquivar da tributação na fonte e na residência por conflito de qualificação jurídica dos rendimentos conhecida como “fonte-residência”, gerando a “double non-taxation” (dupla não-tributação do rendimento), o que é vedado nos termos dos tratados.
Dessa forma, diante das possibilidades de diferentes enquadramentos das remessas do pagamento de serviços de engenharia (serviços técnicos e de assistência técnica) por tomador residente no Brasil à prestador residente na Espanha, o STJ determinou o retorno do processo ao TRF3, já que a análise dos contratos de engenharia cabe às instâncias ordinárias, bem como a análise de legislação estrangeira a que o contribuinte está fazendo uso (em razão do hibridismo).
Por fim, a corte superior reiterou seu firme posicionamento de que tais rendimentos não podem ser qualificados no artigo 22 – “Outros Rendimentos” (equivalente ao Artigo 21 da Convenção Modelo da OCDE), já tendo sido declarada a ilegalidade do Ato Declaratório Normativo COSIT Nº 1, de 05 de janeiro de 2000. No entanto, diante da inexistência de exame de matérias de fato e de direito relevantes para a solução do litígio, entendeu que não seria possível aplicar os precedentes firmados para automaticamente enquadrar os rendimentos na condição de “lucro das empresas” (art. 7º, do modelo OCDE).
Portanto, após detido exame da decisão do STJ no “Caso Engecorps” aqui analisado, observa-se que, tecnicamente, não houve qualquer alteração de entendimento com relação à aplicação do artigo 7º dos tratados aos rendimentos remetidos do Brasil ao exterior a título de prestação de serviços técnicos e de assistência técnica, mas sim, um alerta para a análise de outros elementos a serem considerados na qualificação jurídica de tais pagamentos nos termos dos tratados.
Vale destacar que o STJ não opinou sobre qual seria a correta qualificação jurídica no Caso Engecorps, perdendo a oportunidade de dizer se o Artigo 7º se mantém ou se o Artigo 12 (seja direto ou via Protocolo) se aplicaria ao caso. Justamente por permanecer silente quanto à qualificação jurídica dos rendimentos remetidos do Brasil à Espanha, abarcados pelo Tratado, a título de serviços técnicos e assistência técnica é que não se pode, de forma assertiva, atestar que houve alteração de entendimento jurídico da corte quanto ao tema. Ora, sequer houve “entendimento jurídico” aplicado ao caso concreto, apenas considerações hermenêuticas e menções de dispositivos normativos do Tratado de como deve ser interpretado e aplicado um tratado internacional para qualificar os rendimentos pagos de um pais contratante (Brasil) para o outro (Espanha).
Com base nesse precedente, considerando a importância dada às questões de fato (análise do contrato em si), é possível – ainda que em teoria – que o direcionamento jurisprudencial sobre o tema passe a ser conduzido pelas instâncias ordinárias (TRF ou Justiça Federal), de forma que o STJ deixe de ser protagonista na determinação da qualificação jurídica dos rendimentos quando da aplicação de tratados internacionais, assumindo papel de coadjuvante. Todavia, essa não tem sido a tendência, inclusive recentemente, com a decisão do Caso Volvo pelo STF (que remeteu ao STJ a prerrogativa de interpretar e aplicar os tratados internacionais, devolvendo ao STJ a competência para decidir no referido caso). Sobre o “Caso Volvo” vide nossa análise clicando aqui.
Outro ponto importante que merece destaque no Caso Engecorps é em relação à questão do “hibridismo”. Da forma colocada pelo STJ, nos parece que o entendimento da corte é simplório – havendo “hibridismo”, haverá planejamento abusivo – sem que outros elementos fossem considerados. Esse tema, contudo, é muito mais complexo e merece maior atenção: existem casos em que a não-tributação com base no tratado é intencional, como forma de fomentar o investimento entre os dois países (isso ocorreu no célebre caso Azadi Bachao Andolan, na Índia); também existem casos de conflitos de qualificação jurídica que advém de lei interna versus dispositivo do tratado, e outras de conflito de dispositivos do tratado interpretado distintamente entre país de fonte e de residência. Ou seja, não haver tributação na fonte, na residência ou em ambos os países, não é, per se, planejamento tributário abusivo e, assim, automaticamente repreensível. Outras variáveis muito mais complexas, sequer examinadas pelo STJ, deverão ser analisadas caso a caso, tratado a tratado.
Direto ao ponto: o STJ deu provimento do Recurso Especial interposto pela PGFN acatando a argumentação de que o acórdão recorrido foi omisso em relação a outros pontos relevantes para a solução da controvérsia. Assim, o mérito foi devolvido para o TRF3 analisar a relação contratual entre as partes Brasileira e Espanhola sob a perspectiva de novos elementos trazidos pela PGFN, notadamente outras possíveis qualificações jurídicas para os rendimentos pagos a título de serviços de engenharia. O precedente ainda não representa uma mudança de jurisprudência sobre o tema, mas tão somente exigiu uma análise jurídica mais completa considerando outros dispositivos do tratado antes de decidir qual qualificação jurídica seria a aplicável para tais rendimentos. Ainda é necessário aguardar se o Caso Engecorps, após reexaminado pelo TRF3, terá seu entendimento alterado pelo STJ em relação a aplicação irrestrita do Artigo 7º para tais casos.