Matheus Bueno de Oliveira e José Rubens Constant Pires
Direto ao ponto: o princípio da legalidade vem sendo flexibilizado por normativos editados pelo próprio Legislativo, os quais conferem ao Poder Executivo a função de (e)ditar regras fiscais. Basicamente, leis vêm autorizando que meros decretos do Presidente ou de Governadores alterem alíquotas tributárias. Apesar de severamente criticado pela melhor doutrina tributária, o mecanismo foi recentemente convalidado pelo STF. Essa ameaça representa tendência para a qual os contribuintes devem se manter atentos.
Pano de fundo: a (necessária) rigidez do direito constitucional tributário
Previsto em nossa Constituição Federal (CF), o princípio da legalidade tributária estabelece que é necessário lei para instituir ou aumentar tributos. É um dos pilares fundamentais do direito tributário, cujo objetivo é assegurar aos contribuintes segurança jurídica e previsibilidade da tributação de suas atividades. Por isso, atrelado a esse princípio fundamental está o da anterioridade, segundo o qual somente a partir da edição daquela lei é que o Estado pode exigir o tributo criado ou majorado.
A CF também atribui exclusivamente ao Poder Legislativo, formado por representantes populares eleitos por voto, a edição daquelas leis que instituem ou aumentam tributos. Esse tipo de competência prevista pela CF serve como baliza para garantir a separação e independência entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Somente em exceções expressamente previstas o princípio da legalidade não se aplica. É o caso dos tributos de natureza extrafiscal, como, por exemplo, o Imposto de Importação (II), Imposto de Exportação (IE), IPI e IOF, cuja finalidade em si não é apenas a de arrecadar, mas servirem como instrumento de intervenção econômica. Por isso, eles podem ser majorados ou alterados por meros decretos do Presidente.
Fora as exceções explicitamente reguladas no texto constitucional, a competência legislativa é indelegável, ou seja, alterações tributárias dependem de lei, que devem ser oriundas do Legislativo. Assim o é porque esses princípios e diretrizes a serem invariavelmente seguidos pelo legislador e operador do Direito representam garantias ao contribuinte, proteções para que não haja injustiças na tributação ou qualquer abuso pelo lado do Estado.
Contudo, o que temos observado é que o princípio da legalidade vem sendo indevidamente flexibilizado pelo próprio Poder Legislativo.
A ameaça: delegação de poderes ao Executivo para fixar alíquotas tributárias
Em casos isolados, mas ainda assim perigosos pela formação de precedentes facilmente replicáveis, o Congresso Nacional conferiu ao Presidente da República poderes não previstos na CF.
De fato, na legislação pertinente às contribuições PIS e COFINS, embora o texto da lei fixasse alíquotas padrão, permitiu-se em ao menos duas situações que o Executivo, via Decreto, as alterasse a seu bel prazer: no caso de combustíveis, quando PIS/COFINS são calculados com base em uma alíquota específica (R$ por metro cúbico), autorizou-se que a fixação desse valor fosse realizada via Decreto. E no caso de receitas financeiras auferidas por contribuintes sujeitos à não cumulatividade das contribuições, a alíquota padrão da lei (9,25%) poderia ser reduzida e restabelecida pelo Presidente, também a seu livre arbítrio.
Ou seja, nesses dois exemplos, embora o Legislativo tenha aparentemente cumprido sua função ao estabelecer os critérios de incidência tributária, abriu-se enorme brecha ao se permitir que aqueles mesmos critérios fossem alterados pelo Executivo, sem que houvesse autorização constitucional para tanto.
As críticas da melhor doutrina chamam a atenção para a armadilha plantada pelo legislador. Afinal, se se permite que via Decreto, ilimitadamente, seja alterada a alíquota do tributo, um elemento tão relevante da imposição tributária, o que restou do princípio da legalidade? Estaria ele sendo atendido pela lei que inicialmente previu a delegação não prevista pela CF? Assustadoramente, o Supremo Tribunal Federal (STF) veio a chancelar aquele mecanismo.
O veredicto: STF convalida delegação de competência ao Executivo
Ao analisar processos pertinentes aos dois exemplos citados (PIS/COFINS incidentes sobre a receita bruta auferida na venda de álcool e sobre receitas financeiras), a Suprema Corte brasileira entendeu constitucional o Poder Legislativo editar lei atribuindo ao Poder Executivo autorização para alterar alíquotas por meio da edição de Decreto, desde que dentro dos limites estabelecidos em lei.
Por maioria de votos, o STF sinalizou que, desde que o Poder Legislativo estabeleça alíquotas mínimas e máximas e conceda expressamente aquela autorização, o Poder Executivo poderia manejar as alíquotas a qualquer momento com a edição de um decreto. Nos termos usados pelo Ministro Alexandre de Moraes, o mecanismo funcionaria como um elevador de alíquotas manobrado pelo Executivo, variando dentro do espectro fixado pela lei, sem que isso ferisse a CF.
Como se observa, o STF se contentou com o mero fato de a primeira previsão, justamente a delegação do poder de fixar alíquotas, ter ocorrido por lei. Os votos vencidos alertaram para o atalho que se estaria permitindo, um verdadeiro drible à legalidade. Mas fundamentos como uma suposta agilidade do Executivo e sua alegada maior proximidade ao mercado foram usados como razão de decidir, assemelhando o caso do PIS/COFINS sobre aquelas receitas aos tributos verdadeiramente extrafiscais, conforme o texto constitucional.
Trata-se de precedente verdadeiramente perigoso, pois permite que o Poder Legislativo, por exemplo, venha a editar leis com uma alíquotas altas e outorgar ao Poder Executivo a função de alterá-la, ou mesmo se sucumba à “proximidade” do Executivo ao mercado para lhe conferir poderes ainda maiores. Ao menos a anterioridade mínima parece ter sido preservada, pois nos casos ligados a contribuições sociais exigiu-se a noventena antes de as alíquotas do Executivo começarem a valer.
A tendência: exemplo do pacote fiscal no Estado de SP
O veredicto do STF sequer era oficialmente conhecido e a manobra já ganhou mais seguidores. No fim de 2020, no Estado de São Paulo, a Assembleia Legislativa (ALESP) editou a Lei Estadual nº. 17.293/20 em que também autorizou o Poder Executivo a “reduzir os benefícios fiscais e financeiros-fiscais relacionados ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS”. Mais que isso, aquela norma definiu ainda como benefício qualquer tratamento fiscal que resulte em ICMS menor que 18%.
A partir da autorização concedida por aquela lei, o Governador do Estado de São Paulo já editou decretos, vigentes a partir deste mês de janeiro, aumentando substancialmente a carga fiscal de diversos segmentos.
Em ações distribuídas pelos contribuintes e associações de setores afetados os vícios quanto à imprópria delegação da competência e desrespeito à legalidade são levantados, mas ao menos por ora as notícias são de que as poucas liminares inicialmente obtidas já foram revertidas pelo Tribunal de Justiça local.
A despeito de o ICMS ser tributo não previsto na CF como passível de ser utilizado para fins extrafiscais, de modo que a legalidade deveria de fato ser absoluta, o atual momento econômico tem dado força a raciocínios finalísticos, o que é uma tendência ameaçadora ao direito tributário. Os recentes precedentes do STF no tema da flexibilização da legalidade infelizmente convalidam a postura do Governo de São Paulo e servem de perigoso nNorte aos interessados.
A nosso ver, a autorização concedida pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo para alterar alíquotas é verdadeiramente inconstitucional, um desrespeito aos princípios basilares do direito tributário, e esperamos que isso venha a ser finalmente reconhecido. Até lá, cabe aos contribuintes seguirem atentos a eventuais alterações que lhes afetem, mantendo a litigância do tema até que eventualmente seja reapreciado pelo STF, mas sem ignorar os efeitos práticos sobre sua formação de preço e margem de resultados.
Direto ao ponto: Temos visto uma tendência de leis autorizarem o Poder Executivo a alterar alíquotas por meio de Decreto, o que é condenável por desconstruir o princípio da legalidade, além de gerar insegurança jurídica e eventuais surpresas na tributação. Contudo, os contribuintes devem ficar atentos a esse fenômeno, principalmente depois de o STF ter autorizado o mecanismo em duas situações ligadas ao PIS/COFINS.