Direto ao ponto: com a definição da equipe do novo Executivo, as promessas de campanha sobre uma possível reforma tributária começam a ser mais detalhadas. Embora existam evidentes obstáculos para que tais projetos venham à luz, já se pode notar o claro direcionamento para a tributação mais progressiva (leia-se “cara”) da renda. Do fim da isenção dos dividendos até a extinção dos JCP e do Lucro Presumido (!) e criação de um IGF(!!), passando pela revisão de paraísos fiscais e tributação imediata de fundos fechados, os “super ricos” (leia-se “classe média”) podem esperar quatro anos de terrorismo fiscal.
Reforma tributária versus Reforma do Imposto de Renda: esta é muito mais factível
Conforme tivemos a oportunidade de opinar ainda antes de a eleição presidencial ser definida, independentemente de quem viesse a ser o vencedor do pleito, o chefe do Executivo tem poderes muitíssimo limitados sobre uma verdadeira Reforma Tributária – aquela que mexe com o sistema tributário em sua essência.
Tendo em vista a necessidade de remanejamento de competências, o tema demanda uma proposta de emenda constitucional (PEC), que sequer fica sujeita a sanção presidencial, demandando dois turnos de maioria qualificada em cada uma das casas do Congresso.
De fato, em se tratando de matéria de PEC, o papel do executivo acaba se limitando a politicamente assumir a defesa de ideias perante o Congresso (algo sem dúvida importante em Brasília, mas não determinante para o sucesso da empreitada).
Logo, ainda que já existam duas PECs (45 e 110) sobre o tema já avançadas no Congresso, não seria espantoso chegarmos a 2026 com o tema voltando novamente a ser uma promessa de campanha.
Se reduzirmos a abrangência de uma reforma e focarmos apenas em tributos federais, contudo, o cenário muda. Não se nega que normalmente há interesse de Estados e Municípios nos repasses de arrecadação constitucionalmente previstos, e também não deixa de haver a necessidade de qualquer medida obter o aval da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Contudo, tal corredor é menos estreito, contando com quórum e ritos muito menos complicados do que uma PEC.
Pensando mais especificamente no Imposto de Renda, percebe-se então que existem diversos temas que sequer necessitam de Lei Complementar, bastando uma lei ordinária ou mesmo Medida Provisória para uma reforma drástica, tal qual a que foi tentada no penúltimo ano do Governo Bolsonaro, mas logo foi diluída e abandonada.
Pelas declarações da equipe de transição e do recém indicado novo Ministro da Fazenda, o tema volta à carga com força já no início de 2023, gerando preocupações.
Reforma do IR: ameaças de 2021 voltam ao debate
Oportuno recordarmos que, em vez de propor uma reforma tributária ampla (como as das PECs 45 e 110 – assista aqui nosso evento resumindo elas), o governo Bolsonaro (no tema, essencialmente o Min. Guedes e sua equipe) optou por atacar o assunto por partes, apresentando projetos pontuais de atualização.
O primeiro, ainda em 2020, foi o projeto de lei (PL) que substituiria PIS/COFINS pela nova Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS. Muito criticado, nunca avançou. Já na metade de 2021 surgiu um outro PL focado no Imposto de Renda. Ainda mais atacado que o da CBS, o PL, em sua primeira versão, travestia-se de Robin Hood ao prometer aumentar a taxação dos mais ricos para poder beneficiar milhões.
Em suma, conforme analisamos na ocasião, prometeu-se reduzir o IRPF da maior parte dos contribuintes individuais via correção de sua tabela de alíquotas. Em contrapartida, o arrocho viria numa série de dispositivos mirando negócios e investimentos, supostamente os dos mais abastados.
Os autores da primeira versão daquele PL (o Ministério da Economia, em especial a Receita Federal) apontavam para a necessidade de se atacar uma suposta benevolência da legislação fiscal com os mais ricos, em detrimento dos menos favorecidos. As medidas então propostas seriam forma clara de trazer mais justiça, equidade e progressividade ao sistema tributário. De outro lado, seus críticos viam no projeto uma plataforma para um verdadeiro pacote de maldades por parte do fisco, com aumento de carga. O ex-secretário do Ministério da Economia Paulo Uebel resumiu o sentimento, ao comentar o fato de o sindicato dos auditores fiscais da Receita defender o PL: “é como a CUT apoiar a reforma trabalhista”.
Uma guerra de narrativas foi instaurada, vislumbraram-se estratégias acaso houvesse sua aprovação, mas o PL foi sendo diluído com substanciais alterações ao texto a cada nova versão, até que por fim uma já bem menos assustadora ficasse arquivada num dos escaninhos da Câmara.
Veio então 2022, vieram as eleições e o tema volta com força agora. Pior: a depender do lobby do fisco e sua receptividade no governo, as assombrações daquela primeira versão voltarão a gerar debates. Resumimos elas a seguir:
1. Fim da isenção de dividendos. Nosso palpite: probabilidade alta de ocorrer
A tributação de dividendos talvez seja o carro chefe da reforma do IR. Arrecadaria bastante e ao menos aparentemente ela combina com o discurso populista de justiça fiscal, pois há inegável distância entre as alíquotas de IR de assalariados e a isenção de sócios. Como tal isenção é uma exceção mundial e sua extinção é tentada há muitos anos, ousamos prever existirem grandes chances de tal ideia progredir.
Contudo, não se pode esquecer que os dividendos equivalem a um lucro já líquido de IRPJ/CSLL e de tantos outros tributos elevados da sociedade investida. Algum alento poderia vir se a proposta for acompanhada (como no passado se discutiu) de redução da alíquota corporativa (hoje em 34%). O Brasil sempre perderia uma arrecadação hoje automática e imediata se deixar para a sociedade o poder de diferir parte significativa do IR, mas tecnicamente, podem surgir discussões se essa tributação de dividendos não respeitar os períodos base de lucros até então isentos. O PL de 2021, por exemplo, cometia tal pecado, contrariando mesmo o bom senso quando permitia que, em casos extremos, o mesmo lucro pudesse ser tributado pelas alíquotas corporativas máximas de 34% e depois novamente pelo IR (20% na versão original) proposto na figura do sócio, sem respeito aos princípios da anterioridade, irretroatividade e não confisco.
2. Fim dos JCP (Juros sobre Capital Próprio). Nosso palpite: probabilidade média/alta de ocorrer
De carona com a discussão dos dividendos surge a dos JCP. Instrumento muito utilizado pelas companhias abertas, mas igualmente disponível para quaisquer tipos societários, os JCP permitem que a sociedade remunere os sócios reduzindo seu próprio imposto corporativo (dedutibilidade essa não cabível nos dividendos).
Já há estimativas simulando os impactos de se alterarem as regras de dividendos e JCP. Por ser menos popular (mas igualmente populista) que a primeira, cremos que a ideia de extinguir os JCP tem alguma chance de ir adiante.
3. Fim da isenção de rendimentos de Fundos Imobiliários. Nosso palpite: baixa probabilidade de ocorrer
Quanto aos fundos imobiliários, por muitos vistos até hoje como espécie de fonte relativamente segura de renda previdenciária, as ideias de se passar a tributar seus rendimentos representa duro choque no mercado, com severo desincentivo à atividade imobiliária. Por isso, reputamos pequenas as chances de alteração no tema.
4. Fim do Lucro Presumido e/ou do SIMPLES. Nosso palpite: baixa probabilidade de ocorrer
O regime do Lucro Presumido é uma opção dada pelo legislador a milhões de empreendedores de pequenos e médios negócios. Em vez de recolher o IR sobre o lucro efetivo da operação, mantendo controle contábil completo, o contribuinte opta por pagar uma alíquota fixa sobre sua receita bruta, com menos obrigações acessórias, de modo que há uma facilitação no controle, estabilidade de arrecadação (mantida mesmo em períodos de prejuízo do negócio), mas uma potencial carga final global amenizada. O SIMPLES repete a dinâmica e ainda permite arrecadar sob ela ISS, ICMS e contribuições previdenciárias que de outra forma estariam atreladas ao custo com folha de salários.
A ideia de se extinguir tais regimes parece oriunda de um verdadeiro preconceito de determinados setores do fisco federal de que seria um benefício exagerado. Dado o impacto exageradamente amplo e a decorrente impopularidade da ideia, reputamos baixa a chance de seu avanço.
Alguma variação do conceito, como um que focasse em propriedades imobiliárias, holdings patrimoniais e de propriedade intelectual possivelmente surgiriam, com um pouco mais de chances de virar lei.
5. Fundos fechados: tributação do estoque de resultados e instituição de come cotas anual. Nosso palpite: média probabilidade de ocorrer
Como já discutimos, aqui temos um tema parece ser uma obsessão do fisco. Em 2017 fora previsto pela Medida Provisória (MP) 806, assustando o mercado. Não foi aprovado pelo Congresso na ocasião. Voltou em 2018, no PL 10638, também sem avanços em Brasília. Chegou a ser listado pelo governo Temer como uma das possíveis medidas geradoras de arrecadação para o governo Bolsonaro caso a então perseguida reforma da previdência (lembram dela?) não fosse concluída no início do mandato que agora se encerra.
Em resumo, poderia ser alterada de maneira profunda as regras gerais de tributação de aplicações em fundos de investimento constituídos sob a forma de condomínio fechado, criando uma ficção de disponibilização da renda (que de fato só ocorre em eventos como alienação, resgate, amortização ou liquidação de cotas). O diferimento natural desse tipo de instrumento de investimento cederia lugar para o chamado come cotas. Para além do fim do diferimento, que marca a essência desse tipo de estrutura, provavelmente seria buscada uma drástica tributação concentrada de todo resultado já acumulado no veículo.
Dado o potencial de arrecadação e a sintonia da ideia com os ideiais propagados pelo novo Ministro da Fazenda, cremos existir uma quase certeza de que vai ressurgir no próximo governo. Mas, considerando o histórico de tentativas anteriores, reputamos no máximo possível que o Congresso avalize tal mudança.
Ainda que o faça, a proposta provavelmente cairia em pontos controversos e que poderiam ser discutidos judicialmente, especialmente (i) a aplicação do regime “come-cotas” ainda que inexista disponibilidade econômica ou jurídica da renda; (ii) o assombroso efeito retroativo, posto que a pretendida tributação capturaria a valorização das cotas ocorrida antes mesmo da vigência da norma; (iii) a ofensa à segurança jurídica; entre outros.
6. Criação de IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas). Nosso palpite: baixa probabilidade de ocorrer
Reputamos baixa a chance de se criar um IGF. Não só pela impopularidade de se aumentar ainda mais a quantidade de tributos, mas pela experiência internacional, que reputa o IGF um verdadeiro fiasco, a ideia pode combinar com o discurso do Executivo eleito, mas não cremos que vingue no Congresso.
7. Tributação automática de sociedades offshore. Nosso palpite: baixa probabilidade de ocorrer
Somos sempre questionados sobre o tratamento de sociedades offshore detidas por residentes fiscais do Brasil e, em especial, as chances de o tratamento atual vir a ser reformado.
O maior temor do contribuinte interessado seria o de o Brasil passar a tributar os indivíduos residentes fiscais do Brasil imediatamente quando sociedades offshore (não estabelecidas no país, mas em jurisdições tidas como privilegiadas do ponto de vista fiscal) apurarem lucro no exercício, independentemente de este vir a ser efetivamente deliberado e distribuído ao sócio como dividendo.
Hoje, a legislação somente determina essa tributação automática de lucros de controladas e coligadas no exterior quando tais entidades são detidas por pessoa jurídica residente no Brasil. Para sócios pessoas físicas, o investimento no exterior via sociedades offshore fica sujeito ao regime de caixa, como via de regra ocorre na tributação de indivíduos, ou seja, apenas quando distribuídos os resultados por meio de dividendos – ou quando ocorra alienação da participação, ocasião em que é apurado eventual ganho de capital.
Por ora, ainda cremos serem baixas as chances de algo assim prosperar, embora venha sendo ativamente debatida a ideia. Tal reforma romperia com a tradição de se apurar o IR de indivíduos conforme o regime de caixa e levantaria riscos quanto à liquidez necessária para fazer frente ao imposto, o que por si pode demonstrar afronta ao princípio da capacidade contributiva. Acaso tal proposta venha a abranger entidades não personificadas, como fundos de investimentos, trusts, foundations, etc., sua inviabilidade e questionamento aumentariam, pois ali a distribuição de resultados nem sempre está sob controle do sócio brasileiro.
Direto ao ponto: embora apresentadas como parte de uma reforma tributária que permitiria utilizar instrumentos arrecadatórios como verdadeira justiça social, eis que o novo governo declaradamente assume buscar alcançar os extratos superiores de renda para privilegiar a imensa parte da população, as medidas até agora aventadas podem complicar e encarecer ainda mais a vida do contribuinte, especialmente daquele que empreende e promove o crescimento da economia nacional. Não há limite objetivo para separar o que seria uma “elite” dos contribuintes, eis que diferentes medidas alcançariam diferentes grupos e ensejar discussões jurídicas a respeito de suas validades, gerando insegurança e, inevitavelmente, custos, que por fim acabam por encarecer serviços e mercadorias para todos – justamente o contrário do ideal proposto.