Direto ao ponto: Qualquer estudante de direito tributário sabe que o ICMS, por onerar operações de circulação de mercadorias, deve incidir apenas sobre aquelas transações que impliquem na troca da propriedade sobre o bem, o que não é o caso das meras transferências de estoques entre estabelecimentos de uma mesma empresa. Qualquer profissional que lida com ICMS com alguma frequência sabe que essa tese, embora fortemente defensável, tinha poucos efeitos práticos, especialmente quando ambos os estabelecimentos se localizam no mesmo Estado, pois a não cumulatividade daquele imposto implica haver crédito para o destino, a anular qualquer custo ou descompasso do débito no remetente. Ao julgar a ADC 49 este ano, o STF armou uma verdadeira bomba de insegurança para uma imensidão de cadeias comerciais, eis que o veredicto, apesar de afastar a incidência do imposto, não esclareceu a consequência para os créditos acumulados até a saída desonerada, havendo ainda severas críticas ao uso da modulação como atualmente em discussão entre os Ministros daquela corte.
Em 19/04/2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o mérito da Ação Declaratória de Constitucionalidade 49 (ADC 49), reafirmando o que a doutrina e decisões de diversos tribunais já ecoavam há décadas, tendo enfim reconhecido, com efeitos abrangentes (para além das partes do processo) que “o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual”.
Ainda que esse julgamento em si fosse de alguma forma esperado, ele acabou desencadeando ondas sísmicas sobre diversas cadeias comerciais, pois o aparentemente inocente e benéfico veredicto contra a cobrança de ICMS trouxe consigo uma insegurança ímpar, eis que nada foi a princípio esclarecido a respeito dos efeitos do julgado sobre os créditos de ICMS.
Recordando: por se tratar de imposto constitucionalmente previsto como sujeito à não cumulatividade, o ICMS carrega para cada elo da cadeia de circulação créditos pertinentes aos montantes do tributo pagos pelas cadeias fornecedoras, anteriores.
Como a própria Constituição prevê e autoriza que, em hipóteses de isenção ou não incidência, esses créditos sejam “perdidos”, o julgamento de abril na ADC 49 trouxe consigo o fundado receio de que, com o reconhecimento da não incidência do imposto nas transferências entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte, houvesse um pesado solavanco na não cumulatividade, eis que aqueles créditos estariam sendo estornados, exceto se o próprio STF viesse a expressamente reconhecer que sobre eles deveria ocorrer a manutenção (no estabelecimento remetente, Estado de origem) ou sua transferência (ao estabelecimento receptor, Estado de destino).
Por essa razão, um dos Estados da federação, parte na ADC, opôs o competente recurso de embargos de declaração requerendo que o STF (1) limitasse os efeitos de sua decisão através da chamada modulação do julgado, para que aqueles sejam produzidos apenas a partir do exercício financeiro subsequente ao da conclusão do julgamento; assim como (2) fosse pormenorizada a amplitude da decisão em relação aos créditos (ou seja, se ficariam eles perdidos, transferidos ou mantidos na origem).
No que se refere à modulação, esperam os contribuintes que ela seja minimamente impactante, pois se trata de um mecanismo legal especial, que a despeito de seu inflacionado uso pela Corte Suprema tem natureza e caráter excepcionais, não podendo se fazer dele a regra.
Na prática, a tendência do STF tem sido sempre aplicar a modulação em julgamentos de teses tributárias contrárias ao fisco, pois elas inevitavelmente impactam a saúde dos cofres públicos, sabidamente já combalida. O perigo aqui é que já estamos vivendo sob uma estranha lógica em que quanto maior for a dependência do ente federativo da inconstitucionalidade por ele mesmo criada maiores são as chances de tal erro ser perdoado pela corte máxima.
Mas o maior temor (justificado) dos contribuintes na ADC 49 é a questão dos créditos pertinentes àquela cadeia comercial em que há transferências interestaduais, o que é basicamente a regra sobre todos os centros de distribuição regionais, frequentes e importantes para contribuintes e economias locais.
A melhor interpretação seria a de que, a despeito de não incidir na mera transferência, os créditos são mantidos, pois o ICMS acompanha as circulações propriamente ditas dos bens (as trocas de titularidade jurídica), inclusive aquela que será inevitavelmente perpetrada pelo estabelecimento receptor da transferência, de modo que sempre existe uma saída tributada a fundamentar a manutenção dos créditos da não cumulatividade.
Contudo, fiscos estaduais estão se posicionando de forma arrojada, ou insistindo na incidência do imposto, ou ameaçando com a glosa de créditos, ainda que isto não tenha sido decidido pelo STF em abril, nem esclarecido ainda nos embargos.
Em relação ao recurso pendente, alguns dos votos já conhecidos foram prudentemente no sentido de a decisão original da ADC 49 não afastar o direito ao crédito de ICMS relativo às operações anteriores, recusando qualquer tentativa de estorno daqueles valores. Para esses Ministros, o julgamento meramente afastou a cobrança do ICMS “na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de titularidade da mesma pessoa jurídica, não repercutindo em deveres instrumentais”. Outros propõem que o vácuo normativo criado pelo julgamento da ADC 49, se não preenchido pela atividade legislativa até 2022 (em poucos dias), autorizaria a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular.
Direto ao ponto: a ADC 49 é exemplo notável de insegurança jurídica, eis que, mesmo meses após julgada, seus efeitos são desconhecidos. Por ora, os contribuintes podem litigar para afastar a incidência do ICMS nas saídas em transferência para outros estabelecimentos do mesmo titular. Quanto aos créditos, há verdadeiro vácuo, pois eles sempre foram considerados naturais nas operações tributadas, mas agora há necessidade de regulamentação de sua transferência, em nível nacional e pelos Estados, sem falar em quase inescapáveis ajustes nas rotinas das empresas e impactos nos preços. Como ainda não se tem a conclusão do julgamento, além de acompanhá-lo atentamente, os contribuintes afetados devem avaliar com cuidado como proceder imediatamente, o que em síntese comportaria: manter a rotina anterior, tributando e creditando as transferências, quando assim não expressamente vedado pelos Estados envolvidos; ou assumir/pleitear, com provável litígio, que não haja a incidência na saída, mas os créditos sejam ou mantidos na origem ou transferidos.