Direto ao ponto: Em recente resposta a consulta de contribuinte, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo afirmou que a integralização de capital com transferência de imóvel configuraria hipótese de incidência de ITCMD quando o capital subscrito for inferior ao valor do bem, eis que estaria configurada suposta doação do novo sócio (que teria sofrido prejuízo) em favor dos demais (que estariam experimentando um ganho). Apesar de, em casos extremos, poder haver abuso de direito, simulação ou mesmo fraude a ensejar a requalificação dos atos, a decisão ignora que, na quase totalidade das situações, se está diante de legítimo negócio oneroso, com legítima base legal, não havendo que se falar em incidência do imposto estadual.
Situação hipotética avaliada pela Secretaria da Fazenda de São Paulo
O caso avaliado pela Resposta à Consulta Tributária 22070/2020 era relativamente simples e corriqueiro: pessoa jurídica cuja atividade é ser holding familiar (no caso, os sócios são irmãos) questionou sobre a “necessidade de recolhimento do ITCMD em relação às transferências de imóveis para integralização do capital social de sociedade limitada, considerando que recebeu de Oficial de Registro de Imóveis nota de devolução sobre exigência do pagamento do imposto.”
Em vez de simplesmente confirmar a natural não incidência do imposto na situação, eis que não se está obviamente diante de qualquer doação, muito menos transmissão causa mortis, a fazenda paulista ignorou o caráter oneroso da integralização de capital e afirmou que a ausência de maiores detalhes do caso concreto (valor dos imóveis e participação dos sócios) impunha que a solução à consulta se fizesse apenas em tese.
Daí em diante, a resposta é tão inusitada quanto desastrosa: entendeu a autoridade que se o valor do bem conferido ao capital pelo sócio ingressante for superior ao montante conferido à operação este sócio estaria realizando verdadeira doação em favor dos demais controladores da sociedade. Para ilustrar sua conclusão, socorreu-se do seguinte exemplo:
“8.1. Dois senhores, A e B, proprietários de um imóvel (na proporção de 50% cada um), com valor de mercado de R$ 500.000,00 e valor histórico (constante das declarações de Imposto sobre a Renda) de R$ 200.000,00 resolvem, juntamente com um terceiro, C, constituir uma sociedade limitada. Para tanto, estabelecem no contrato social que o capital da empresa, formado por 300 mil quotas (com valor de R$ 1,00 cada quota) será realizado mediante a integralização do referido imóvel, por parte dos dois senhores, A e B, e por R$ 100.000,00 em dinheiro integralizado por C. As quotas serão divididas da seguinte maneira: 100 mil quotas para cada sócio.
8.2. Pode-se perceber, nesse caso, que:
8.2.1. Houve integralização do imóvel pelo valor histórico (permitida pelo artigo 23 da Lei 9.249/1995).
8.2.2. O valor (de mercado) das quotas resultantes da incorporação do imóvel ao capital social não é igual ao valor de mercado do imóvel integralizado. A empresa, que não tem nenhum passivo, possui como ativos um imóvel de valor R$ 500.000,00 e R$ 100.000,00 em dinheiro, somando R$ 600.000,00 de valor de mercado. As quotas sociais pertencentes aos senhores A e B estão registradas por R$ 200.000,00, no entanto, possuem valor de mercado de R$ 400.000,00.
8.2.3. O terceiro C, que integralizou o valor de R$ 100.000,00 em dinheiro, passou a ser proprietário de quotas sociais registradas pelo valor de R$ 100.000,00, mas que possuem valor de mercado de R$ 200.000,00.
8.3. Os senhores A e B possuíam um patrimônio de R$ 250.000,00 cada um (metade do imóvel que possuía valor de mercado de R$ 500.000,00) e com a constituição da empresa, nos termos estabelecidos, passaram a ter um patrimônio de R$ 200.000,00 cada um, representado por 100.000 quotas do capital social da empresa. As 100.000 quotas, conforme indicamos, estão registradas por R$ 100.000,00 reais, mas possuem valor de mercado de R$ 200.000,00 (33,33% do valor total de mercado da empresa, que é de R$ 600.000,00). É evidente que ambos sofreram um prejuízo patrimonial da ordem de R$ 50.000,00 cada um.
8.4. O terceiro C, por outro lado, sofreu um acréscimo patrimonial de R$ 100.000,00, uma vez que integralizou o valor de R$ 100.000,00 em dinheiro para a constituição da empresa e passou a ser titular de 100.000 quotas do capital social que, conforme indicamos, possuem valor de mercado de R$ 200.000,00.”
A conclusão insólita da autoridade: o caso é uma verdadeira doação, eis que presentes todos os elementos necessários para tanto (natureza contratual, aceitação, transferência patrimonial e liberalidade).
Porque a resposta do fisco paulista erra: ignora o caráter oneroso da integralização de capital e toma a exceção como regra
Embora alarmante, a conclusão da resposta à consulta 22070 não deveria sobreviver a uma análise mais profunda dos fatos. Assumindo o mesmo exemplo adotado pelo fisco em sua fundamentação, podemos rebater a incidência do ITCMD com os seguintes argumentos:
– Não houve liberalidade ou gratuidade alguma nos atos praticados. Os sócios A e B gozaram de faculdade legal reconhecida pelo fisco paulista para integralizar o imóvel pelo seu custo de aquisição (R$200.000,00), tendo em troca passado a serem cada um donos de 33,33% do capital social da holding. O ato societário é oneroso, porque em troca do imóvel a entidade entrega cotas que conferem direito também monetariamente mensurável;
– Ainda que a participação adquirida pelos sócios A e B possa ser entendida como inferior ao valor de mercado do imóvel transferido, conferindo potencial ganho ao terceiro ou sócio ingressante (que contribuiu R$100.000,00 em dinheiro), enquanto a sociedade não realizar o ganho, alienando o bem e reconhecendo o lucro correspondente, tal diferença é apenas potencial, uma expectativa.
– Mesmo se e quando realizada a venda do imóvel pela sociedade, esta não necessariamente o seria pelo hipotético valor de mercado do imóvel, mas ainda que sim, o ganho da entidade não geraria qualquer acréscimo imediato à situação patrimonial dos sócios; sequer há obrigação destes de reconhecer tal lucro, que só seria capturado mediante distribuição de dividendos e liquidação da sociedade, atos que têm natureza distinta, e igualmente onerosa.
– Na grande maioria dos casos, o aporte de bens de distintos valores de mercado é equalizado pelos sócios conforme o valuation conferido à entidade, que muitas vezes leva em consideração uma séria de motivos ainda não capturados pela contabilidade, como intangíveis, know how e o próprio esforço intelectual de cada participante do negócio. A premissa é de que terceiros independentes, ao se tornarem sócios de um empreendimento comum, não o fazem abrindo mão de patrimônio por liberalidade, em favor dos coparticipantes. A regra é de que em suas avaliações individuais haverá, ao menos potencialmente, retorno, ou seja, uma contraprestação cujo valor, ainda que não imediatamente concreto, é superior ao do investimento.
– A resposta da Sefaz parece assumir que na integralização de bens a valor maior que o de capital, os sócios ingressantes estariam atribuindo vantagem aos demais investidores, mas isso só seria verdade em casos extremos, em que a vontade de efetivamente doar estaria sendo camuflada pelo ato societário e, mesmo assim, dependeria de atos subsequentes para que a efetiva transferência de propriedade pudesse se materializar – como, por exemplo, se ato contínuo a sociedade fosse liquidada, tivesse capital reduzido ou fosse objeto de cisão. O primeiro passo, de mera integralização, sequer seria suficiente para configurar qualquer planejamento abusivo, pois o que se tem, voltando ao exemplo, é a mera participação em empreendimento que pode ou não explorar, com finalidade lucrativa, imóvel que faz parte de seu imobilizado. Caso se perceba eventual lucro imobiliário, este, se e quando realizado, poderá ser objeto de distribuição desproporcional de dividendos.
– Levada ao extremo, a lógica adotada pela resposta do fisco paulista permitiria concluir que qualquer diferença de participação societária decorrente de mera integralização de valores, parte destinados a capital, parte a reserva de capital – a qual aproveita a todos os sócios igualmente, mas com menor diluição dos sócios antigos –, seria passível de configurar doação, o que somente demonstra a incorreção do raciocínio quanto a suposta liberalidade.
– Por último, cumpre notar que o caso teria o potencial de gerar conflito entre Estado e Município, pois se de um lado aquele poderia vir a aplicar o racional de doação, não raro vemos os Municípios tentando exigir ITBI sobre a diferença de valor entre o capital integralizado e o valor de mercado do bem. A nosso ver, embora se trate de ato oneroso, privilegiando o ITBI em detrimento do ITCMD, ainda não caberia a cobrança do imposto municipal, eis que (i) a integralização por valor de custo é faculdade permitida pela legislação federal e (ii) a operação está protegida por imunidade. Na leitura do STF, bastaria que o valor fosse todo destinado a capital social. Quanto a esse aspecto, recomendamos a leitura de nosso artigo sobre o precedente da suprema corte (clique aqui).
Direto ao ponto: a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo errou feio ao afirmar que a integralização de capital com transferência de imóvel configuraria hipótese de incidência de ITCMD apenas pelo fato de o capital subscrito ser inferior ao valor de mercado do bem. Somente em casos isolados, presentes simulação ou outros vícios, uma doação camuflada estaria presente, e mesmo assim deveria haver passo adicional à conferência dos bens, como uma subsequente desconstituição da sociedade. Felizmente, a situação corriqueira de se capitalizar entidades com bens e direitos cujo valor de mercado supera o atribuído no ato societário é medida lícita, com expressa autorização legal e alheia ao imposto estadual, de modo que eventuais questionamentos como o aqui avaliado seriam provavelmente derrubados pelos tribunais administrativos ou judiciais.