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MP 806: Porque a nova tributação de fundos de investimento é discutível

Publicado originalmente em novembro/2017, por Matheus Bueno de Oliveira e Frederico Silva Bastos

No fim de outubro o governo federal publicou a Medida Provisória nº 806 (“MP 806”) trazendo mudanças profundas à tributação de fundos.

Resumo da MP 806

Em apertado resumo, a MP 806:

(a) institui, a partir de maio de 2018, o recolhimento semestral (“come cotas”) de imposto de renda (“IR”) para os fundos fechados (excetuadas algumas espécies de fundos, como FII, FIDC, FIC-FIDC, FIA e FIC-FIA;

(b) estipula que, em maio de 2018, na primeira apuração do come cotas, os administradores desses fundos deverão considerar como base do imposto de renda (“IR”) todo o rendimento acumulado e ainda não oferecido à tributação;

(c) segrega o tratamento de FIPs entre aqueles qualificados como entidades de investimento e aqueles não considerados entidades de investimento, ficando estes (c.1) (FIPs não entidade de investimento) sujeitos a apurar IR sob as mesmas regras pertinentes às pessoas jurídicas (fim da isenção do portfólio) e aqueles (c.2) (FIPs entidade de investimento) obrigados a recolher o IR sobre eventuais ganhos (desinvestimentos) quando estes superem o custo (capital integralizado no fundo), ainda que reinvestido e não distribuído;

(d) determina que os FIPs não entidades de investimento terão os rendimentos já acumulados tributados pelo IR em 02.01.18; e

(e) exige que, a partir de 2018, os rendimentos acumulados de quaisquer fundos serão considerados pagos ou creditados aos cotistas no caso de cisão, incorporação ou transformação de fundos.

Principais Críticas à MP 806

A despeito de a aplicação da MP 806 ainda depender de sua concreta conversão em lei, o que pode nem ocorrer, ou se dar com base em texto diferente da proposta original do Executivo, considerando que há efeitos cuja ocorrência já é prevista para o início de janeiro de 2018 (antes do prazo final que o Congresso Nacional possui para aquela apreciação), reputamos oportunas as seguintes críticas ao texto atualmente em vigor:

Vigência

Para que não percam a eficácia desde sua edição, as medidas provisórias devem ser convertidas em lei em até 120 dias contados de sua publicação (no caso, desde 30.10.17 – não sendo contados os dias em que o Congresso estiver em recesso).

No caso da MP 806, é possível que a conversão em lei venha a se concretizar já em 2108. Contudo, nessa hipótese, alguns fundos já teriam sido afetados pela norma, que exige recolhimentos ainda em janeiro próximo futuro.

Ora, ainda que a inexistência do come cotas seja equivalente a um mero diferimento do imposto, não se nega o efeito prático da mudança no fato gerador do tributo. Tanto assim o é que a justificativa da MP é exatamente a arrecadação por ela possibilitada. Logo, por se tratar de medida que implicaria espécie de majoração de imposto de renda, a MP 806 só poderia produzir efeitos a partir de 1º de janeiro de 2018 se for convertida em lei pelo Congresso Nacional até o último dia deste exercício de 2017. Afinal, a Constituição Federal determina que a aplicação do chamado princípio da anterioridade (ou anualidade) se faz tendo em conta a conversão da MP em lei, não a mera publicação daquela.

Ou seja, se a conversão em lei ocorrer em 2018 (cenário possível), a nova tributação só poderia valer a partir de 01.01.2019.

(IR)retroatividade

Independentemente de a MP 806 vir a ser convertida em lei ainda em 2017 (sendo válida a partir de 01.01.18), ou apenas em 2018 (sendo aplicável a partir de 01.01.2019, a despeito de sua redação atual), os rendimentos pertinentes a períodos encerrados até o dia anterior à vigência da norma (ou seja, até 31.12.17, ou 31.12.18, no segundo cenário) só poderiam ser tributados quando implementada a condição prevista na legislação anterior, ou seja, quando do resgate ou liquidação do fundo fechado.

Essas pretendidas mudanças que afetam retroativamente os rendimentos acumulados poderiam ser questionadas por ferirem a segurança jurídica, explicitada no princípio da irretroatividade das normas.

Afinal, a decisão original de investimento do cotista levou em conta as vantagens da tributação diferida versus a limitação de liquidez dos fundos fechados. O diferimento, ainda que seja benefício fiscal, não é gratuito, devendo ser protegido o direito adquirido daqueles que cumpriram as condições que lhe cabiam. Não por outra razão o regime pré-MP 806 era harmônico às regras próprias e características dos fundos fechados, cujos regulamentos vedam o acesso dos investimentos a todos.

O surpreendente fim do diferimento, com antecipação de incidência, altera drasticamente os rendimentos dos fundos fechados, frustrando expectativas legítimas dos investidores. Não se pode negar que as regras anteriores foram normas indutoras de conduta e não deveriam ser ignoradas como tal.

O novo come cotas e a disponibilidade “ficta” para instrumentos de investimento cuja disponibilidade dos rendimentos é vedada afeta o retorno dos cotistas, equivalendo a uma indireta majoração de tributação, o que só reforça a aplicação do princípio da não surpresa (anterioridade) e, ainda mais, a irretroatividade.

Realização e Disponibilidade da renda

Por fim, a distribuição ficta criada pela MP 806 feriria o conceito de renda, pois, via de regra, como adiantado, diferentemente da discricionariedade presente nos fundos abertos, os fundos fechados não permitem o resgate de cotas e assim não conferem total disponibilidade jurídica sobre a renda acumulada (com ressalvas como, por exemplo, caso tenha havido amortização de cotas com rendimento, ou outras formas de realização).

Logo, enquanto o cotista não possui alternativa para acessar o rendimento antes do resgate, o recolhimento antecipado do IR é questionável. Ademais, a tributação seria aplicada indistintamente, ainda que a renda não realizada se refira a mera apreciação em valor de ativos detidos pelo fundo. A recente “nota executiva” divulgada pela Receita Federal, longe de negar o problema, o escancara [sugerindo o que muitas vezes é impossível: “(os fundos poderiam) alienar ativos de suas carteiras e convocar os cotistas para que efetuem aportes de capital”].

Conclusão

Os contribuintes afetados (cotistas de fundos fechados não excetuados pela MP 806, bem como cotistas de FIPs) poderiam pleitear judicialmente a manutenção do regime antigo, alegando ofensa aos princípios acima discutidos. No mínimo, a proteção dos rendimentos do passado (“estoque de rentabilidade” em 31.12.17, ou 31.12.18, se a MP não for convertida em lei este ano) poderia ter tratamento diverso dos rendimentos futuros, em homenagem à irretroatividade da norma, como já reconhecido pelos tribunais algumas vezes.

Acreditamos que a matéria permite o uso de estratégias judiciais com menores custos e riscos, e que eventuais liminares teriam efeito equivalente ao diferimento, ainda que viessem a ser cassadas. No melhor dos cenários, a rentabilidade atual seria mantida e o diferimento privilegiado. O uso de depósitos judiciais nunca seria obrigatório, mas sempre uma opção. E eventual insucesso não representaria cenário pior do que o que a própria MP 806 já representa.

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