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Caso Grendene: limites à realocação da renda entre empresas do grupo e reflexões sobre provas de dolo, fraude e simulação no planejamento tributário atual

1. Introdução

O caso ora em análise, envolvendo a Grendene S.A. Calçados e Componentes (“Grendene”), apesar da autuação da empresa datar de 1986, é um dos casos mais emblemáticos e famosos envolvendo os limites do planejamento tributário no Brasil.

Tornou-se um caso notório por deixar consignado o que os ingleses chamam de “Do’s and Don’t’s” (isto é, o que se pode e o que não se pode fazer) no planejamento tributário que envolva a divisão de receita (renda) entre empresas do mesmo grupo, visando repartir e realocar valores entre diferentes entes jurídicos.

Este caso pode, indubitavelmente, ser considerado como um marco para os contribuintes no que tange à eleição de fatores ou requisitos que devem estar presentes na estruturação desse tipo de segmentação de atividade e receita entre as empresas do mesmo grupo econômico, bem como evidenciou quais requisitos ou eventos jamais podem estar presentes para que tal planejamento tributário possa ser considerado válido pelas autoridades administrativas e pelo próprio Poder Judiciário.

Evidentemente que, por toda a evolução das teorias que cercam o planejamento tributário, notadamente a elisão e a evasão fiscal, nos últimos 20 anos, muita coisa evoluiu, trazendo mudanças consideráveis na atual conjuntura jurídica do tema.

Contudo, não se pode negar que o chamado “Caso Grendene” é corriqueiramente citado por autores, professores, pesquisadores, advogados, agentes fiscais e juízes quando o tema “planejamento tributário abusivo ou elusivo” está sob análise.

Por este motivo, o Caso Grendene é atemporal e único no Direito Tributário brasileiro, por ter se transformado no célebre e primeiro verdadeiro leading case envolvendo os limites da elisão fiscal por força da consideração dos institutos hoje tão debatidos como simulação, dissimulação, abuso de direito, abuso de forma e propósito negocial.

Para os que duvidam de sua atemporalidade e importância, ao mesmo tempo plasmada em sua atualidade e influência, ousamos convidar o leitor a indagar se, nos diversos casos analisados nos dias de hoje, após quase 25 anos deste julgado, e mesmo em casos futuros, o Caso Grendene não poderia, ainda que parcialmente, ser mencionado para orientar a decisão final, seja a favor do Fisco (como o foi à época), seja a favor do contribuinte, ao negar os argumentos jurídicos vencedores à época.

Superada a apresentação e consignada a relevância do caso, passamos a descrever seus fatos e os argumentos que levaram à condenação judicial da Grendene em 1987 para, em cima dos argumentos e justificações utilizados, tecer nossos comentários sobre o caso e os fundamentos jurídicos decisão, finalizando com nossa opinião sobre o que se pode esperar do futuro próximo envolvendo o tema “limites ao planejamento tributário no Brasil” baseado na segmentação operacional de atividade empresária em duas ou mais sociedades do grupo.

II. Discussão e Desfecho na Esfera Administrativa

Na sessão do dia 25 de fevereiro de 1986, o Recurso nº 89.806 interposto pela Grendene contra a Delegacia da Receita Federal em Caxias do Sul, RS, foi julgado pela Terceira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes, importando no Acórdão nº 103-07.260, relatado pelo Conselheiro Urgel Pereira Lopes, e assim ementado:

IRPJ – TRANSFERÊNCIA DE RECEITAS – EVASÃO FISCAL. Há evasão ilegal de tributos quando se criam oito sociedades de uma só vez, com os mesmos sócios que, sob a aparência de servirem à revenda dos produtos da recorrente, têm, na realidade, o objetivo admitido de evadir tributo, ao abrigo de regime de tributação mitigada (lucro presumido).

Importante ressaltar que o provimento ao recurso foi negado pelo voto de qualidade, sendo assim, 3 conselheiros votaram pelo provimento ao recurso e 4 conselheiros contra.

De acordo com o auto de infração lavrado em 27.06.85, foram apuradas irregularidades relativas ao ano-base de 1981, exercício 1982, em razão da operação da Grendene por meio (interveniência) de 8 (oito) outras empresas limitadas (“Alpene”, “Comerfar”), “Money”, “Trio”, “APN”, “Nepealex”, “Silver” e “Comercial”) cujos sócios eram os mesmos sócios da Grendene.

A autuação pautou-se no art. 157, § 1º do RIR/80[1], alegando-se subfaturamento de parcela das vendas da Grendene, que supostamente realocava tal parcela da renda tributável a uma ou mais das 8 empresas recém-criadas, de forma a transferir o seu lucro total inicialmente tributável.

O relator descreve a forma pela qual a Grendene desempenharia esse “artifício”, segundo o próprio, de subfaturamento, conforme se verifica, in literis:

“Ao receber pedidos de seus representantes, ao invés de emitir notas fiscais de venda diretamente aos compradores, ela o fazia através das empresas comerciais, cuja existência tinha por única e exclusiva finalidade a de diminuir o lucro tributável da Grendene S.A., já que elas, empresas comerciais, não possuíam estrutura, instalações e tudo o mais que uma empresa necessita para exercer plenamente suas atividades. Das empresas listadas, 4 não possuíam sequer um funcionário, e as restantes tinham um funcionário cada uma. Todas tinham endereço coincidente da Grendene S.A.”[2]

Após dar alguns exemplos de como a Grendene fazia tais operações, constata em seu relatório que há substancial diferença de preço entre as notas fiscais de venda emitidas pela Grendene para as empresas comerciais recém-criadas e destas 8 para os revendedores, diferença esta de 60% entre os preços praticados, nos dois exemplos escolhidos e presentes no acórdão (i.e., venda da “melissa verão” da Grendene para a APN por Cr$ 165,75/par e da APN para o revendedor por Cr$ 276,25/par; e venda da “melissa Miami adulto” da Grendene para a Comercial por Cr$ 249,00/par e da Comercial para o revendedor por Cr$ 415,00/par).

A partir destas constatações, o Relator concluiu que a Grendene reduzia suas receitas de faturamento com a venda de seus produtos por meio do repasse destas mercadorias a preços “muito inferiores” às 8 empresas recém-criadas, sendo que estas últimas venderiam as mercadorias pelo preço supostamente de mercado.

Constata ainda que os preços de venda das mercadorias por parte das 8 empresas do grupo para terceiros eram exatamente os mesmo praticados pela Grendene para terceiros.

Finalmente, assevera que a Grendene é uma empresa tributada sob o regime de Lucro Real, ao passo que as 8 empresas comerciais o são pelo Lucro Presumido, razão pela qual haveria um grande prejuízo para a Fazenda Pública.

A autuação culminou com a imputação da receita líquida das empresas comerciais (vendas menos compras mais receitas financeiras, totalizando quase Cr$ 277 milhões) à Grendene, para tributação pelo Lucro Real, aplicando adicionalmente, sobre tal montante, multa de 50%, correção monetária e juros de mora.

Ao final do relatório, observou-se que a decisão de primeira instância julgou procedente o lançamento determinando a cobrança de Imposto de Renda relativo ao exercício de 1982 no valor originário de Cr$ 110.785.088, mais correção monetária e juros de mora, bem como multa de 50% sobre o valor total corrigido.

Também foi mencionado que o auto de infração sob análise decorreu de outro auto de infração semelhante, anteriormente lavrado e que originou o Acórdão nº 103-05.942, de 12.12.83.    

No que tange ao voto do Relator Urgel Pereira Lopes faz uso de sua decisão precisamente no julgamento do Acórdão nº 103-05.942 anterior, reproduzindo os trechos de seu voto prévio e decidindo por negar provimento ao recurso.

Dentre os trechos que julgamos relevantes serem reproduzidos, do voto no Caso Grendene sob análise, destacamos os seguintes:

“A contribuinte, no essencial, não os refuta, antes admite o claro propósito de praticar evasão fiscal.

(…)

Portanto, a única conclusão logicamente possível, à vista do que nos autos se contém, é de que a recorrente constituiu o lote de 8 (oito) sociedades para pagar menos imposto.

(…)

O argumento é tergiversante.

A uma, porque se discute, nestes autos, única e exclusivamente o desvio de receitas da recorrente para as 8 sociedades.

(…)

A duas, porque não está em análise a tributação específica de cada uma das 8 sociedades (…) Mormente considerando-se que, das 8, asó 4 tinham 1 (um) empregado cada uma e todas funcionavam em endereços que coincidem com os da recorrente e assumiam, como despesas mais expressivas, os fretes até o destino das mercadorias.

(…)

Pois, uma coisa é constituir uma sociedade com o fim último de fugir à tributação, outra, bem distinta, constituir uma sociedade em que, acessoriamente, se venha a pagar menos tributo.

A sociedade há de ser criada, fundamentalmente, para lograr a realização de seu objeto declarado.

Ora, no caso das oito gêmeas dadas à luz do universo jurídico pelos dignos sócios da recorrente, ficou mais do que evidente (aliás, ficou confessado) que, não obstante seu objeto social compreendesse, na sua realização, a revenda dos produtos da recorrente, na realidade tudo isso não passou de disfarce. Talvez nem tanto, na medida em que nem houve preocupações de disfarçar.

Na verdade, a constituição das oito sociedades traduziu autêntico negócio simulado, com o confessado intuito de enganosamente prejudicar o Fisco.

(…)

‘In casu’, é flagrante que as oito sociedades não tinham o real propósito de descentralizar as atividades da recorrente, racionalizando-lhe a administração e a operacionalidade; Esse propósito aparente – digo propósito, porque é o único que se ajustaria ao objeto social da mini-sociedades – é enganoso, é simulado, porque é falso.

(…)

E a falta de cerimônia foi ao ponto de se criarem 8 (oito) de cambulhada. Se necessário, seriam oitenta, ou oitocentas.

De modo que a receita atribuída às oito sociedades é, de fato e de direito, receita da recorrente. Só a simulação contundente amparou sua deslocação e conseqüente omissão nos registros da Grendene.

(…)

Finalmente, o relator conclui que as receitas das 8 sociedades pertenciam, na realidade, à Grendene, discordando da defesa da recorrente que alegou ter existido uma transferência de receita, representada pela diferença de preço nas transações entre a Grendene e as demais empresas, visto que a receita não fora realizada pela Grendene, mas pelas demais empresas recém-criadas.

III. Discussão e Desfecho na Esfera Judicial

A disputa chegou ao Poder Judiciário, mais precisamente ao Juízo Federal da 5ª Vara do Rio Grande do Sul por meio da Apelação Cível nº 115.478-RS (registro nº 6.643.746) em 18 de fevereiro de 1987.

De acordo com o relatório do acórdão, Grendene S.A. Calçados e Componentes movia ação anulatória de débito fiscal contra a União Federal, especificamente versando sobre Imposto de Renda, multa e juros, sob o argumento de que houve omissão de receitas no valor de Cr$ 73.689.279,00, o que importava em cerca de Cr$ 29.475.711,00 de débito fiscal.

A acusação é de que houve subfaturamento por meio de empresas coligadas de titularidade de seus diretores, as quais a Grendene teria vendido mercadoria por preço abaixo aos praticados normalmente com seus clientes.

A base de cálculo utilizada na autuação fiscal foi calculada da seguinte forma: diferença entre os preços pelos quais a Grendene vendeu seus produtos às referidas empresas do grupo e os preços pelos quais as empresas venderam os produtos aos lojistas, sendo tais valores baseados nos livros fiscais das mesmas.

O argumento da Grendene na ação judicial em análise foi o de que os atos praticados por ela e pelas 8 empresas criadas para o grupo econômico não configuram, propriamente, “omissão de receita”, por não se enquadrarem em nenhuma das hipóteses do RIR/80, que as descreve em seus artigos 158, 180 e 181. Desta forma, alega que se trata de presunção relativa que, portanto, deve ser provada pelo Fisco.

Na defesa da Grendene, como não houve receita da mesma, mas sim das outras 8 empresas do grupo estas sim que efetuaram vendas a clientes e, para tanto, receberam preço de mercadorias, não houve omissão de receitas, mas sim “transferência de receita representada pela diferença de preços nas transações entre a autora e as demais empresas”. Resume seu argumento na seguinte frase: “não houve receita, e não se pode omitir o que não se realizou”. Assim, o fato de a Grendene ser optante pelo regime de tributação do Lucro Real e as demais empresas optantes pelo Lucro Presumido não influencia em nada a questão.

A empresa também adentrou a contestação da base de cálculo da autuação, sob o fundamento de que seria inadmissível o montante autuado, pois tal valor desconsidera o ICM incidente sobre a diferença de preços (entrada e saída das mercadorias), além de não computar os custos próprios de cada empresa (aluguel, salários, luz, etc.) o que reduziria o lucro tributável de forma considerável.

O débito total objeto de pedido de anulação pela Grendene era de R$ 386.146.547,00, já com os acréscimos legais totais.

Ademais, baseou a contra-argumentação sobre a inexistência fática das pessoas jurídicas embasada pelo Fisco por força de 4 das empresas possuírem apenas 1 empregado cada uma e todas as 8 funcionarem em endereços coincidentes com os da própria Grendene, além do fato de que as despesas mais expressivas das 8 empresas recém-criadas serem os valores com fretes até o destino da mercadoria, salientando que as pessoas jurídicas existem apenas de direito, com base no art.16 do Código Civil da época[3] (Lei nº 3.071 de 1916), por se tratar de uma ficção jurídica.

A autora chegou, inclusive, a alegar que: “é possível existirem 30 ou 300 empresas com uma mesma sede social, uma só escrivaninha e uma só máquina de escrever”.

No que tange a acusação de que os preços praticados pela Grendene nas transações com as 8 empresas recém-criadas foram inferiores aos preços praticados no mercado, pela própria Grendene, a empresa se defendeu alegando que os preços de venda das mercadorias para as 8 empresas do grupo foram inferiores apenas aos preços praticados com empresas varejistas, pois, iguais aos praticados com empresas distribuidoras (atacadistas).

Finalmente, como os sócios também foram tributados normalmente, pede que seja reduzido o montante da base de cálculo computando o valor do imposto de renda por eles pago.

                A sentença, na 1ª instância, julgou a ação procedente em parte, reduzindo o valor do débito tributário para Cr$ 50.484.618,49. Inconformada com a decisão, a Grendene requereu a reforma da sentença.

                No extinto Tribunal Federal de Recursos (TFR) o acórdão consignou os seguintes fatos:

  • As 8 empresas foram constituídas de uma só vez e no mesmo dia, pelas mesmas pessoas físicas, que por sua vez são sócios da autora, e as 8 pessoas jurídicas têm o mesmo objeto social (“explorar comercialmente por atacado e varejo calçados e outros produtos inerentes ao ramo de manufaturas de plástico, no mercado nacional, podendo outrossim operar também com o mesmo objetivo no mercado internacional”);
  • As 8 empresas possuem o mesmo endereço da própria autora (Grendene);
  • Os fretes contratados para levar as mercadorias da Grendene para as 8 empresas, por estarem sediadas no mesmo endereço, não pode ser aceito como despesa dedutível, por desnecessidade;

Por tais razões, entendeu-se que existiu “anormalidade” na constituição de tais pessoas jurídicas.

                Sob a ótica formal, não houve qualquer irregularidade jurídica, conforme atesta o relator, salientando que as sociedades foram corretamente registradas, contabilizaram tudo perfeitamente e recolheram o ICM incidente sobre as vendas de mercadorias. Inclusive, as conclusões da perícia dão como certas a existência das pessoas jurídicas, a escrituração de seus atos, suas transações, etc., para fins de Direito Privado.

                Também foi levantado trecho da decisão a quo para reiterar que as sociedades criadas pela Grendene só existiam e só se justificavam pra dar lucro à autora e que elas “não têm finalidade própria, “objeto social próprio, não têm simulacros de pessoas jurídicas cujas atividades são pré-ordenadas mediante um plano concebido por três sócios da autora, que se revezaram nos quadros daquelas, na faina de proporcionar à autora pelo artificioso confronto de dois regimes tributários, apreciáveis diferenças de receitas que podem ser consideradas omitidas pela autora, à luz da interpretação econômica dos fatos geradores”.

                O voto do relator chama atenção para um efeito tributário ilícito, não meramente elisivo, em razão da quebra do princípio da igualdade de tratamento tributário perante os demais contribuintes. Entende, implicitamente, que houve um desvirtuamento do propósito (finalidade) que embasa e justifica a existência de um regime simplificado de tributação (lucro presumido), isto é, proporcionar a sobrevivência e possibilidade de crescimento na economia nacional das pequenas e médias empresas. Por isso, o relator tratou o caso como um desvio de finalidade por medida artificiosa, para economia fiscal.

                Chama à atenção constatação veiculada no acórdão de que as 8 empresas seriam, na realidade, “empresas de papel”, conhecidas no Direito Internacional como “P.O. Box companies” ou “mail box companies”, isto é, apenas caixas postais, para recebimento de correspondência via correio, mas que não existiam efetivamente (estrutura organizada de atividade empresarial).

                Retornando à quantificação do débito fiscal reitera-se que o valor exigido inicialmente pelo Fisco (Cr$ 73.689.279,00) trata-se não de lucro tributável, mas da mera diferença entre as entradas e as saídas nos livros fiscais de ICM, base esta ainda não computada pelas deduções permitidas. Portanto, julga procedente em parte o pedido da ação anulatória, neste tocante, por vedação de o Fisco exigir imposto de renda sobre base de cálculo que não se coadune com o conceito legal de “Lucro Real”.

                Neste tocante, ao considerar as despesas dedutíveis da base de cálculo do lucro real, chega-se à base de cálculo de Cr$ 50.484.618,49 sob a qual se deve, ainda, deduzir os tributos pagos pelas empresas do grupo, no montante de Cr$ 2.547.436,00 (confirmados pelo perito no item 6 do Laudo, fls. 889).

                Por fim, no voto do Ministro Eduardo Ribeiro, foi mencionado que o caso envolvendo a Grendene tratava-se de uma “gigantesca fraude”, caracterizada por “oito empresas fingidas, que na realidade, só existiam no papel, com um único objetivo de diminuir a tributação da empresa”, razão pela qual ele deu provimento parcial à apelação.

                A decisão da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, por unanimidade, deu provimento parcial ao recurso considerando, portanto ter havido omissão de receitas, mas reformulando a base de cálculo objeto do débito fiscal exigido.

IV. Nossos Comentários

                Superada a exposição dos fatos e da argumentação jurídica tanto na esfera administrativa como na esfera judicial, que envolveram o Caso Grendene, passaremos a tecer nossos comentários sobre tais argumentos utilizados pela autoridade fazendária, Poder Judiciário e pelo contribuinte.

                Da mesma forma, elencaremos os fatos que contribuíram para a caracterização da suposta omissão de receitas, bem como destacaremos os fatos que, se presentes, poderiam evitar a condenação da empresa, concluindo assim os “do’s and don’ts” do planejamento tributário de divisão e realocação de receitas entre empresas de um mesmo grupo econômico, a partir deste ilustre e importante precedente, nos dias de hoje e no futuro próximo.

IV.A) Ausência de “Empresa” (Atividade) – Caracterização de “Empresas de Papel” ou P.O. Box Companies (Sociedade)

                O primeiro comentário que julgamos pertinente em relação ao acórdão proferido na esfera administrativa (cujo entendimento foi ratificado na esfera judicial) diz respeito ao argumento da ausência de fato das 8 sociedades recém-criadas pelos sócios da Grendene, em razão da falta de “estrutura, instalações e tudo o mais que uma empresa necessita para exercer suas atividades”, na qualidade de empresas comerciais, bem como o fato de que 4 das 8 novas empresas sequer possuíam um funcionário, e as restantes tinham 1 funcionário cada uma. A prova de que o endereço das 8 empresas eram coincidentes com o da Grendene também foi ventilada.

                Neste ponto, o argumento do Fisco para a desconsideração do planejamento tributário da Grendene é o de “falta de substância” da pessoa jurídica, ou ausência de uma efetiva “empresa”, mas apenas P.O. Box companies ou “empresas de papel”, pro forma, que não existiam no mundo social, mas apenas em documentos.

                Para verificarmos a procedência jurídica de tal argumento, em razão do direito tributário ser um direito de sobreposição, de acordo com os Art. 109 e 110 do CTN[4], devemos consular o artigo 966 do Código Civil de 2002, que trata do conceito de “empresa” para fins de direito comercial:

“Art. 966. Considera-se empresário que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.

                De acordo com a doutrina especializada no tema, “por empresa devemos entender uma repetição de atos, uma organização de serviços, em que se explore o trabalho alheio, material ou intelectual. A intromissão de se dá, aqui, entre o produtor do trabalho e o consumidor do resultado desse trabalho, com o intuito de lucro”[5].

                Não resta dúvida, portanto, que o Código Civil de 2002 trouxe o conceito de “empresa” como exercício de uma atividade, de acordo com seu art. 966 supra citado, razão pela qual “empresário” é quem organiza sua atividade organizada, com fins de lucro, na qual ele coordena seus bens (capital) com demais sócios e/ou com o trabalho aliciado de outrem[6].

                Neste ponto cabe a importante distinção entre empresa enquanto atividade e “empresa” como sociedade. De acordo com REQUIÃO[7], a sociedade empresária, desde que esteja constituída nos termos da lei, adquire categoria de pessoa jurídica, tornando-se capaz de direitos e obrigações. Desta forma, a sociedade é empresária, jamais empresa; é a sociedade, como empresário, que irá exercitar sua atividade produtiva para qual foi constituída.

                A ausência de funcionários (empregados, com vínculo trabalhista conforme preconiza o art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho[8] – CLT) jamais poderá caracterizar, por si só, elemento para desconsiderar a pessoa jurídica (que, conforme já explicado, existe desde que cumpridos os requisitos formais previstos em lei, passando a existir perante terceiros quando tem fé pública, com o registro de seus atos constitutivos no órgão competente).

                Tampouco poderá, a ausência de empregados, caracterizar a ausência de empresa, enquanto exercício de atividade, haja vista esta prescindir de funcionários para existir, bastando para tal que a pessoa jurídica exerça a atividade descrita em seu objeto social, isto é, não esteja inativa[9].

                Na esfera judicial, o relator chegou a ressaltar, inclusive, que a Grendene era a única fornecedora das 8 sociedades, para embasar a “evasão fiscal” caracterizada pela omissão de receitas, como se a existência da exclusividade de fornecedor fosse elemento para a verificação de simulação ou fraude na estrutura.

                Todavia, já vem se desenvolvendo, paulatinamente, certo entendimento por parte do Fisco e de parte da doutrina de que, no caso de uma empresa não possuir funcionários (ou apenas 1), possuir o mesmo endereço de outras várias (apenas com a clássica menção “parte”, ou até mesmo “parte A”, “parte B”, etc.), possuir os mesmos sócios (ou sócios em comuns) e os mesmos diretores ou administradores (ou diretores/administradores em comum); possuir exclusividade de fornecedor ou exclusividade de cliente; apesar de tais requisitos não culminarem, necessariamente, à constatação de que houve simulação (ou dissimulação) no planejamento tributário, eles contribuem de forma considerável para tal cenário presuntivo. Saliente-se, contudo, que não são provas de simulação ou dissimulação, mas, a nosso ver, meros indícios e, como sabido, indícios não têm força de prova[10].

                Evidentemente que, mesmo presentes todos os requisitos supra citados, no caso concreto, ainda assim haverá possibilidade de, por provas, se comprovar que ainda assim co-existiam diferentes empresas, isto é, unidades autônomas organizadas e estruturadas para a persecução de lucros por meio de operações comerciais, industriais ou prestação de serviços. Neste caso, restará afastada a presunção relativa de que houve simulação ou dissimulação, haja vista que os requisitos fáticos ora citados como provas de que existem 2 ou mais empresas autônomas, para fins de não unificação das atividades destas por desconsideração de atividades empresariais (empresas) distintas, não decorrem de lei, sequer implicitamente, e muito menos lei tributária.

                Basta lembrar que diversas “empresas” são perseguidas por pessoas jurídicas apenas formadas por sócios, sem qualquer empregado; ou que, por vezes, um estabelecimento físico está apto, efetivamente, a comportar duas ou mais empresas, de forma separada, ainda que no mesmo endereço. Nada impede, também, que uma pessoa física seja sócia de mais de uma sociedade, e que tais sociedades transacionem entre si. Mas todos esses elementos devem estar claramente comprovados por meio de provas que, na esfera fiscal, devem ser preferencialmente documentais. É, mais uma vez, a consagrada Teoria das Provas[11] resolvendo o caso concreto.

                Curiosamente, há menção do relator no processo judicial colacionando o entendimento do contribuinte que alegou ser “possível existirem 30 ou 300 empresas com uma mesma sede social, uma só escrivaninha e uma só máquina de escrever”. Atualmente, este exemplo não seria, prima face, factível de ser comprovado, tanto se o termo “empresa” se referisse à atividade organizada visando lucros, como se estivesse a se referir a pessoa jurídica, uma vez que uma escrivaninha em um mesmo endereço para 300 pessoas jurídicas distintas seria, de fato, improvável.

                Mais uma vez consignamos que os “atavismos jurídicos”, tais como os genéticos, devem ser repelidos do sistema por constituírem verdadeira mutação do tipo e dos conceitos jurídicos que compõem o rol de provas necessário ao planejamento tributário, este sim, lícito.

                Não podemos concordar, destarte, com a afirmação supra reproduzida do contribuinte, que sustenta a possibilidade jurídica de manter 300 empresas em uma mesma sede com uma só escrivaninha. Mas porque não 3 empresas em 3 cubículos, com 3 escrivaninhas, e uma secretária comum, no mesmo endereço, em imóvel comercial dividido em 3 mini-salas, pra reduzir custos? Neste caso, em regra, não haveria qualquer atavismo, não sendo possível alegar-se, de início, ilicitude decorrente de simulação ou fraude na estrutura empresarial.

                Fato inexorável é que, hoje, para que um planejamento tributário de realocação de receitas entre empresas do mesmo grupo seja considerado como válido, para as autoridades administrativas, deve demonstrar robusteza fática que suporte a co-existência dessas 2 ou mais empresas.

                Nesse sentido, entendemos que a denominação social, o objeto social, os funcionários, administradores e ativos de cada sociedade do grupo devem estar claramente segmentados, de forma que possam ser atribuídas, individualmente, a cada uma das empresas que compõem tal grupo.

                Eventual confusão entre administradores ou Conselho de Administração de uma sociedade com outra, ou funcionários que trabalhem para mais de uma empresa do grupo, bem como estoques ou depósitos/armazéns comuns a várias empresas podem fazer com que as Autoridades Fiscais aleguem haver simulação na estrutura empresarial e, desta forma, considerem todas as empresas como uma só, de forma semelhante ao que ocorreu com a Grendene.

                A questão da sede, denominação e objeto social também se mostra como uma presunção de simulação, de acordo com o Fisco, quando estes elementos coincidem entre duas ou mais empresas. Desta forma, endereços ou sedes distintas, denominações sociais não similares e objetos sociais bem delineados e feitos de acordo com cada empresa auxiliam na contra-argumentação de ausência de dissimulação ou mesmo simulação, a depender do caso, no planejamento tributário do grupo.

                Por fim, a identidade exata dos sócios em mais de uma sociedade culmina por ser uma presunção de operações manipuláveis e, portanto, é considerado como elemento a ser cuidadosamente mitigado em planejamentos tributários, sempre que possível sendo evitado.

IV.B) Prática de Preço Inferior ao de Mercado – Distribuição Disfarçada de Lucros

                O segundo argumento levantado pelo Fisco, para a caracterização de simulação em razão de omissão de receitas, foi a de que os preços nas vendas da Grendene para as demais empresas recém-criadas do grupo foram praticados a preços muito inferiores aos preços praticados com terceiros (partes independentes). Desta forma, ao diminuir o preço praticado, a Grendene reduziria seu lucro tributável, portanto, omitindo receita e causando danos à Fazenda Nacional.

                Já a decisão judicial consignou que a Grendene vendeu mercadoria por preços inferiores aos de mercados, o que levou à redução artificial de seu Lucro Real.

                Neste ponto cabe comentar que a verificação de preços praticados por empresas relacionadas, em âmbito interno, compete às regras de Distribuição Disfarçada de Lucros (“DDL”), prevista atualmente no art. 464 do RIR/99, que assim dispõe:

Art. 464. Presume-se distribuição disfarçada de lucros no negócio pelo qual a pessoa jurídica:

I – aliena, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo a pessoa ligada;

II – adquire, por valor notoriamente superior ao de mercado, bem de pessoa ligada;

III – perde, em decorrência do não exercício de direito à aquisição de bem e em benefício de pessoa ligada, sinal, depósito em garantia ou importância paga para obter opção de aquisição;

IV – transfere a pessoa ligada, sem pagamento ou por valor inferior ao de mercado, direito de preferência à subscrição de valores mobiliários de emissão de companhia;

V – paga a pessoa ligada aluguéis, royalties ou assistência técnica em montante que excede notoriamente ao valor de mercado;

VI – realiza com pessoa ligada qualquer outro negócio em condições de favorecimento, assim entendidas condições mais vantajosas para a pessoa ligada do que as que prevaleçam no mercado ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros.

                No caso em análise, a hipótese seria a do inciso I, isto é, a Grendene supostamente teria alienado, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo a pessoa ligada, no caso, uma ou mais das 8 empresas cujos sócio eram comuns à Grendene.

                Note-se que a definição de pessoa ligada, para fins das regras de DDL, está expresso no Art. 465 do atual RIR/99, senão vejamos:

Art. 465. Considera-se pessoa ligada à pessoa jurídica:

I – o sócio ou acionista desta, mesmo quando outra pessoa jurídica;

II – o administrador ou o titular da pessoa jurídica;

III – o cônjuge e os parentes até o terceiro grau, inclusive os afins, do sócio pessoa física de que trata o inciso I e das demais pessoas mencionadas no inciso II.

                Da mera leitura do referido artigo, verifica-se que tal conceito não abarcaria as vendas para empresas das quais os sócios da vendedora (Grendene) são sócios. A interpretação ampliativa, neste caso, estaria refutada, haja vista que o Caso Grendene não se enquadra em tal escopo subjetivo de aplicação das normas de DDL. Não poderia, portanto, haver autuação fiscal da Grendene sob embasamento das normas de DDL, neste caso.

                Ademais, ainda que – de forma inválida, segundo nosso entendimento – se pudesse aplicar as normas de DDL no caso da Grendene alienar bens à valor inferior de mercado para empresas das quais seus sócios também participam, é sempre relevante ressaltar que, caso o preço seja inferior ao de mercado, mas não seja “notoriamente inferior”, a norma ainda assim não se aplica. Destarte, em preços inferiores porém justificados, tais como decorrentes de certas condições especiais de garantia, compras em atacado, pagamento à vista etc. é natural que haja certos descontos, inclusive, nos preços praticados entre partes relacionadas.

                Sobre o tema de DDL, existe jurisprudência administrativa que sustenta que para que se configure a distribuição disfarçada de lucros na alienação de um bem da pessoa jurídica a pessoa ligada, é indispensável que fique provado nos autos que o preço praticado seja notoriamente inferior ao de mercado. A simples constatação de que o preço praticado foi inferior ao valor contábil do bem não serve para caracterizar a DDL, inclusive à época do Caso Grendene, em que tal norma estava prevista no artigo 367, inciso I do RIR/80, precisamente por estar em desacordo com o conceito legal de valor de mercado[12].

                Também já se consagrou na jurisprudência administrativa que, por se tratar de presunção legal, a prova do fato indiciário cabe ao fisco, e esta tem que se apresentar objetivamente robusta: só após esse dever fiscal é que o ônus da prova em contrário é repassado ao contribuinte[13].

                Finalmente, a base de cálculo neste caso será, se procedente a alegação de DDL, somente a diferença entre o desconto dado a terceiros e o desconto dado à controladora, devendo ficar suficientemente demonstrado, por parte do Fisco, que houve favorecimento por descontos maiores[14]. É o que se verifica da decisão administrativa abaixo:

DISTRIBUIÇÃO DISFARÇADA DE LUCROS – AQUISIÇÃO DE BEM POR VALOR SUPERIOR AO DE MERCADO – HIPÓTESE DE SIMULAÇÃO NÃO CONFIGURADA – A descaracterização de contrato jurídico sob o manto da simulação somente pode ser declarada se efetivamente configurados os pressupostos do vício de vontade, havendo o Fisco que prová-los de maneira cabal e suficiente.

(ACÓRDÃO 103-21.181 do 1º CC. 3a Câmara. Publicado no DOU em: 05.05.2003.)

                Desta forma, a mera alegação – avulsa – de que houve prática de preço inferior ao de mercado por meio de constatação feita com base em universo amostral tendencioso e impreciso, caracterizado pelo cálculo selecionado de determinadas operações esparsas, como ocorreu no Auto de Infração, não constitui prova suficiente para que o Fisco alegasse ter havido, de fato, prática de preço notoriamente inferior ao de mercado.

                Além da necessidade de Laudo Pericial, a ser apresentado pelo Fisco, há a necessidade prévia de tal operação estar apta, de acordo com a legislação de regência à época, a caracterizar tal operação de venda de mercadorias como Distribuição Disfarçada de Lucros que, no caso da Grendene em análise, não se materializava.

                Portanto, se ausente a caracterização de DDL, por não aplicação do escopo subjetivo da norma ao caso concreto, o argumento de que o preço praticado foi abaixo ao de mercado, para fins fiscais, não é admitido, restando apenas eventual sanção à tal prática de preço predatório na esfera do Direito Econômico. Uma vez que a prática de preço predatório não é coibida pelo Direito Tributário que, sequer, tem competência para alegar ter havido preço predatório na operação – conforme já tivemos a oportunidade de comentar em artigo anteriormente publicado[15] – caberá às autoridades competentes (Secretaria de Direito Econômico e/ou Conselho Administrativo de Defesa Econômica) fazer tal prova e impor as sanções, decorrentes de violação de norma de direito econômico, cabíveis.

                Convém apontar que, na autuação fiscal da Grendene, não houve qualquer alegação de DDL, mas apenas acusações de “prática de preço inferior ao mercado” como elemento para constatação de omissão de receitas.

IV.C) Dolo de “Clara e Exclusivamente” Pagar Menos Tributo

                De acordo com o relator do acórdão, na esfera administrativa, parafraseando o relator da impugnação, os fatos estavam suficientemente descritos de forma que, por ausência de contra-argumentação, o contribuinte teria admitido o “claro propósito de praticar evasão fiscal”. Teria, desta forma, constituído as 8 sociedades “para pagar menos imposto”.

                Finaliza a alegação de ilicitude no planejamento tributário da Grendene ao sustentar que inexiste a possibilidade jurídica de que uma sociedade comercial ser constituída com o objeto social declarado de proporcionar a economia de impostos sendo que, no caso, houve um “disfarce”, por meio de negócio simulado, na realização do objeto social das 8 empresas criadas.

                E concluiu, o relator do processo administrativo, que o propósito da criação das referidas sociedades foi enganoso, simulado e falso. Na decisão judicial há menções a fraude, sonegação e ilicitude dos atos do contribuinte.

                Sobre o dolo, fraude e simulação no planejamento tributário, há vasta e importante doutrina sobre o tema[16]. Não é nosso objetivo discutir os conceitos de “elisão, evasão e elusão fiscal”, os quais já tivemos oportunidade de discutir em estudo prévio sobre o assunto[17].

                O que é importante comentar neste ponto é que o dolo de economizar tributo é, por essência, o próprio planejamento tributário.

                Ora, o planejamento tributário (legítima economia de tributos) pode ser definido como o conjunto de “atitudes lícitas que possam vir a ser adotadas pelos contribuintes na estruturação ou reorganização de seus negócios, tendo como finalidade a economia de tributos, seja evitando a incidência destes, seja reduzindo ou diferindo o respectivo impacto fiscal sobre as operações”[18].

                Já o dolo, segundo a doutrina penal[19], pode ter 3 definições a depender da teoria penal adotada. Para a “teoria da vontade”, age dolosamente quem pratica a ação consciente e voluntariamente. Portanto, para que haja dolo é necessária a consciência da conduta e do resultado, e que o ato praticado pelo agente seja voluntário (e não acidental). Já para a “teoria da representação” o dolo é a simples previsão do resultado, embora não se negue a existência da vontade na ação, o que importa nesta teoria é a consciência de que a conduta acarretará aquele resultado. Finalmente, pela “teoria do assentimento” (ou “do consentimento”) o dolo pressupõe a previsão do resultado a que o agente adere, não sendo necessário que ele o queira, i.e., mero consentimento em causar o resultado na conduta praticada[20].

                Como se verifica das 3 teorias do dolo, qualquer delas está em plena sintonia com o pressuposto do planejamento tributário[21].

                Se o planejamento tributário é a prática de atos lícitos, prévios à ocorrência do fato gerador, de forma a evitar, reduzir ou retardar o impacto fiscal de seus atos e negócios jurídicos, todo e qualquer planejamento tributário é e será – sempre – doloso. Seja porque é doloso porque o contribuinte pratica tais atos prévios de forma consciente e voluntariamente (dolo pela teoria da vontade); seja porque tem consciência e prevê o resultado, i.e., economia fiscal (dolo pela teoria da representação); ou porque consente o resultado (redução, eliminação ou postergação do tributo incidente) ainda que não o queira, mas dá sua aquiescência para que os atos sejam por alguém implementados e o tal resultado seja atingido (dolo pela teoria do assentimento ou consentimento).

                Portanto, alegar que o dolo de economizar tributos na estruturação dos negócios do contribuinte é requisito para a não produção de efeitos, para fins fiscais, naquele pré-ordenamento comportamental, ou que o dolo constitui agravante para aplicação de multa no negócio praticado é, por essência, um erro crasso e uma impropriedade técnica tamanha. Isto porque, o dolo é, precisamente, o pressuposto de todo e qualquer planejamento tributário e, portanto, só existirá planejamento tributário (economia lícita de tributos) por meio de ato doloso do contribuinte, de incorrer, prever ou consentir o resultado de economia fiscal.

                Não se pode conceber o dolo, no Direito Tributário, como agravante de multa ou como elemento caracterizador de fraude ou simulação dos negócios e atos jurídicos praticados pelo contribuinte. Reiteramos: planejamento tributário é, por natureza, doloso, seja qual for a teoria do dolo adotada. E isso é plenamente lícito e legal (de acordo com a norma jurídica veiculada por lei) bem como legítimo (pois está em plena sintonia com os princípios tributários da legalidade, tipicidade, capacidade contributiva, irretroatividade, não-confisco e outros).

                Dolo e planejamento tributário são elementos indissociáveis, da mesma forma e na mesma proporção de que são lícitos: jurídica e plenamente.

                Completamente descabida, destarte, a aplicação, pela Autoridade Administrativa, do diploma legal previsto pela Lei n. 9.430/96, em seu art. 44, § 1º – que impõe a multa de 150% – nos casos em que há desconsideração de efeitos fiscais para determinado planejamento tributário, sob o argumento de que houve dolo.

                Vejamos a redação de tal dispositivo:

Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas

(…)

§ 1  O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.

                Ao consultarmos a Lei nº 4.502/64 observamos que tais artigos mencionados no § 1º do art. 44 da lei retro citada, tratam da sonegação, fraude e conluio, todos estes tipos penais pressupõem o dolo como elemento, senão vejamos:

Art. 71. Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária:

I – da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias;

II – das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.

Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.

Art. 73. Conluio é o ajuste doloso entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas, visando qualquer dos efeitos referidos nos arts. 71 e 72.

                Cumpre notar que essas condutas são crimes. No caso do dolo no planejamento tributário a que nos referimos inexiste crime, porque o planejamento tributário é sempre lícito.

                Assim, no inciso I do art. 71 da Lei nº 4.502/64 caracteriza como crime de “sonegação fiscal” a ação dolosa outra que não a de economizar tributos (esta plenamente lícita), mas sim a ação de, após incorrido o fato gerador, retardar ou impedir que a Autoridade Administrativa verifique a ocorrência do fato gerador. Neste caso, o contribuinte já incorreu na hipótese de incidência tributária, não havendo que se falar em planejamento tributário, mas em evasão fiscal. O que se condena neste crime é que o contribuinte vele ou esconda a ocorrência do fato gerador, de forma a não ser exigido a pagar tributo que ele já deve. Este inciso I, portanto, não trata de planejamento tributário.

                Já o inciso II do art. 71 da Lei nº 4.502/64 proíbe a conduta, por parte do contribuinte, de impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador. Ora, é exatamente essa a definição, sintetizada, de planejamento tributário. Não se pode conceber, em razão do princípio da tipicidade tributária, da legalidade tributária, da capacidade contributiva, da irretroatividade, do não-confisco e da segurança jurídica, que as atividade prévias à ocorrência do fato gerador, tomadas pelo contribuinte na ordenação preventiva de seu negócio jurídico, de forma a reduzir ou diferir o tributo que onerá-lo, seja considerada crime. É, portanto, claramente inconstitucional tal dispositivo, por indiscutível violação dos princípios constitucionais já citados. O dolo, neste caso, por se tratar de planejamento tributário é, como dissemos, indissociável, não havendo base constitucional para se sustentar que tal prática dolosa de economizar tributo é considerada como fraude.

                Por fim, o inciso III da mesma lei peca quando define como conluio o ajuste entre duas pessoas visando atingir o resultado do inciso II. Não se discute que, quando duas pessoas se reúnem e agem conjuntamente para alcançar os objetivos do inciso I do art. 71 da Lei nº 4.502/64, há claramente crime – violação de norma penal-tributária legitimamente tipificada. Todavia, o mesmo não se pode dizer do inciso II, pois, como já aduzido, o inciso II é plenamente lícito e constitucional, sendo o conluio descrito no inciso III do art. 71 apenas válido e eficaz para o ajuste entre 2 ou mais pessoas descrito no inciso II.

                Caso fosse outra a conclusão sobre o inciso III em comento, chegaríamos ao absurdo de aceitar que um Parecer Legal de advogado para seu cliente, versando sobre planejamento tributário, seria considerado como crime de conluio, por visar retardar, reduzir ou impedir a ocorrência do fato gerador na operação em análise. Como conseqüência, tanto o advogado como o cliente estariam sujeitos teriam infringido norma penal, o que se mostra, por óbvio, juridicamente absurdo.

                Portanto, a aplicação de multa agravada de 150% nos casos de “dolo” no planejamento tributário mostra-se infundada, uma vez que o art. 44, § 1º da Lei n. 9.430/96 faz menção aos crimes de sonegação, fraude e conluio que, em um planejamento tributário doloso, jamais existirão, haja vista o pressuposto de licitude do planejamento tributário. Em outras palavras, prática de ato doloso visando economizar tributo não é crime, tampouco pode ser sancionado com multa qualificada se tiver seus efeitos fiscais desconsiderados.

IV. D) Fraude Civil e “Fraude Fiscal”

                No entanto, a depender do motivo pelo qual o planejamento tributário foi desconsiderado e, portanto, não se trata de elisão fiscal, mas sim, de elusão fiscal (violação indireta e ilícita à hipótese de incidência tributária), a multa qualificada poderá ser aplicada, porém, jamais com supedâneo no dolo de economizar tributos.

                O primeiro desses casos é na hipótese de evasão fiscal em virtude de fraude.

                No acórdão proferido no Caso Grendene, há menção à fraude no voto do Ilmo. Ministro Edurdo Ribeiro, que afirma que “montou-se uma gigantesca fraude. Oito empresas fingidas, que, na realidade, só existiram no papel, com o único objetivo de diminuir a tributação da empresa”, razão pela qual, mostra-se necessário tecer alguns comentários sobre tal instituto.

                Inicialmente, deve-se apontar que a fraude aqui entendida, que permite o aumento da multa, é o crime contra a ordem tributária (sonegação) previsto nos incisos I a V do art. 1º da Lei nº 8.137/90, infra reproduzidos:

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

                Entendemos que, somente no caso do art. 1º da Lei nº 8.137/90 supra mencionado, é possível a aplicação de multa e a sanção penal para a mal chamada “fraude fiscal” que, na realidade, não é a “fraude fiscal” referida no art. 72 da Lei nº 4.502/64 (esta sinônimo de planejamento tributário – elisão fiscal – e, portanto, lícita), mas sim, aquela mencionada no art. 1º da Lei nº 8.137/90, esta sim sinônimo de sonegação fiscal e ilícita, inclusive para fins penais.

                Ademais, não cabe falar em “fraude puramente fiscal” que não seja criminal, isto é, outra que não seja sonegação fiscal tipificada na Lei nº 8.137/90, como pretende o Fisco.

                Como já relatamos em prévio trabalho tratando da questão[22], a fraude fiscal seria o negócio jurídico indireto, que é admitido no Direito Tributário pátrio. Restaria, somente, a fraude à lei tributária como resultado, i.e., o efeito da simulação, mas não como sua causa, ou seja, como pressuposto da ilicitude e da nulidade[23].

                Por exemplo, eventuais documentos falsos, isto é, forjados para criar despesas inexistentes para fins de dedutibilidade do Imposto de Renda são emitidos, sob a ótica do Direito Civil, em fraude à lei. O efeito da fraude no Direito Civil será, portanto, redução do tributo, na esfera tributária. Contudo, não houve “fraude fiscal”, mas sim, fraude (sempre civil) que, por implicar em nulidade do negócio jurídico, de acordo com o art. 166, VI, do Código Civil de 2002[24], desencadeia conseqüências no Direito Tributário (que, nos termos do art. 109 e 110 do CTN, sofre a sobreposição do Direito Privado).

                Afirmar que “fraude fiscal” inexiste no Direito brasileiro é o mesmo que dizer que o Direito Tributário somente sofrerá os reflexos de ilicitude ou antijuridicidade dos atos, qualificados de acordo com os critérios previstos pelo Direito Privado. Isto porque, se os atos e negócios jurídicos são nulos à luz do Direito Civil e Comercial, também o serão para os demais ramos do Direito, inclusive o Tributário[25].

                Assim, a desconsideração do ato ou negócio jurídico na seara do Direito Civil, tornando-o nulo, fará com que ele também seja nulo e não produza efeitos fiscais no Direito Tributário, não obstante, por vezes, ato nulo poder produzir efeitos fiscais de oneração[26] (p.ex., no caso de concessão de benefício fiscal por meio de ato nulo).

                É o que DERZI preceitua com clareza ímpar:

“a lei tributária não proíbe a prática de certo contrato ou ato jurídico civil ou comercial. Por tal razão, praticar ato ou negócio jurídico em fraude à lei tributária parece esbarrar em óbice intransponível (…) se, apenas se, um ato ou negócio jurídico é nulo em face do Direito Privado, será também nulo no campo do Direito Tributário”

                A figura que mais se assemelharia ao que se erroneamente chama de “fraude fiscal” seria o abuso de formas ou a teoria do substance over form, institutos estes que analisamos em trabalho específico já publicado[27] e que, por fugirem ao tema, não serão novamente examinados, mas que, inexistem até o momento no Direito Tributário brasileiro e, portanto, não são aplicáveis aos planejamentos tributários hoje.

                Portanto, para nós, somente a fraude criminal (omissão de dados fiscais, adulteração de documentos fiscais etc.) poderá ensejar a multa qualificada de 150% na esfera tributária, nos termos da decisão administrativa abaixo colacionada:

IRPJ e OUTROS – EXS.: 2001 a 2005

MULTA QUALIFICADA – CABIMENTO – Cabível a aplicação da multa de lançamento de ofício qualificada, quando a contribuinte, mediante fraude, modifica as características essenciais do fato gerador e da obrigação tributária, reduzindo o montante do tributo.

(Acórdão 105-17.249. 1º Conselho de Contribuintes. 5a. Câmara. Publicado em 15.10.2008)

IV. E) Negócio Jurídico Simulado e Provas

                Por último, resta abordar a questão da simulação no planejamento tributário do Caso Grendene, inúmeras vezes citado na decisão administrativa e judicial, explícita e implicitamente.

            De acordo com o art. 167, § 1º, do Código Civil vigente, a simulação consiste em uma declaração falsa de vontade, enganosa, em que se busca atingir efeito diverso daquele que deveria produzir, seja de por inexistência do ato simulado (simulação absoluta) seja por camuflagem do ato verdadeiramente desejado por meio de outro ato enganoso (simulação relativa ou dissimulação). Observe-se:

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.”

                A questão envolvendo a simulação e a dissimulação envolve o conjunto probatório para se anular o negócio jurídico na esfera do Direito Privado, que fora praticado pelo contribuinte visando implementar economia de tributos, mas que, por ter incorrido em simulação (absoluta ou relativa) faz com que tal ato seja inexistente juridicamente, nulo de pleno, não produzindo efeitos para fins de Direito Civil e, portanto, tampouco para fins de Direito Tributário.

                Desta forma, resta inquestionável que para haver desconsideração de atos negócios jurídicos, por parte das Autoridades Fiscais, com base em simulação e dissimulação é imprescindível que tenha havido, previamente, a caracterização da simulação na esfera do Direito Civil, conforme já expusemos em trabalho prévio[28].

                Conforme aduz BARRETO[29], provadas a simulação ou a dissimulação, perdem relevo a ausência de propósito negocial e a alegação de abuso. Contudo, se não demonstrada por meio de provas a simulação ou a dissimulação, cabendo o ônus de prova à quem acusa, as ações do contribuinte serão plenamente respaldadas pelo ordenamento jurídico nacional.

                Portanto, no Caso Grendene, entendemos que tanto as Autoridades Fiscais como o Poder Judiciário – em razão dos fatos relatados – foram imprecisos em sustentar que houve evasão fiscal, fraude e simulação, fazendo verdadeira confusão entre cada um dos institutos.

                Em nossa opinião, o Caso Grendene se aproximaria a uma dissimulação, isto é, uma série de atos praticados (constituição de 8 pessoas jurídicas para divisão da receita faturada) visando ocultar o verdadeiro ato jurídico, qual seja, a existência de uma só pessoa jurídica (que, na realidade, deveria faturar todo o montante realocado às 8 sociedades criadas).

                Todavia, deve-se ter em mente que para se considerar ter havido dissimulação, neste e em qualquer caso, é imprescindível que o Fisco colha evidências de que o ato ou negócio jurídico relatado pelo contribuinte não se consumou e, fundamentalmente, apresente provas da existência do ato ou negócio que se buscou ocultar (negócio dissimulado).

                Não são suficientes, para a desconsideração dos efeitos fiscais do negócio jurídico em razão de simulação ou dissimulação, meros indícios ou presunções, mas somente, provas, isto é, deve haver claro nexo de causalidade entre a ocorrência do ato ou negócio e o conteúdo jurídico do fato a ser comprovado[30], refutando a relação de causalidade na qual outro fato também possa ter ocorrido a partir da mesma prova.

V. Elementos Fáticos que Contribuem para Confirmar ou Repelir a Existência de Simulação no Planejamento Tributário (“Do’s and Don’ts” da Elisão Fiscal)

                A partir dos elementos fáticos destacados e comentados no Caso Grendene podemos encontrar aqueles que contribuem para eventual prova de que houve, de fato, simulação ou dissimulação no caso concreto (“Don’ts” da elisão fiscal), ao passo que, a contrario senso, tal emblemático precedente, quando interpretado em conjunto com recentes decisões da Receita Federal do Brasil, nos traz alguns elementos fáticos que podem servir de prova em favor do contribuinte para que, se existentes no caso concreto, refutem a alegação de simulação ou dissimulação na estrutura implementada pelo contribuinte (“Do’s” da elisão fiscal).

                De certa forma, os “Do’s and Don’ts” da elisão fiscal contemporânea são – a nosso ver errônea e imprecisamente – qualificados pelo CARF como elementos de “propósito negocial”[31], conforme algumas decisões recentes[32].

                O CARF já sedimentou entendimento de que, quando inexiste prova de que o ato praticado foi aquele efetivamente desejado pelo contribuinte, ou desconformidade entre a vontade consciente e a exteriorizada, bem como quando não existir outro motivo para sustentar a estrutura empresarial que não a economia de tributos, restará caracterizada simulação:

“IRPF – GANHO DE CAPITAL – ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS – SIMULAÇÃO – Constatada a desconformidade, consciente e pactuada entre as partes que realizaram determinado negócio jurídico, entre o negócio efetivamente praticado e os atos formais de declaração de vontade, resta caracterizada a simulação relativa, devendo-se considerar, para fins de verificação da ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda, o negócio jurídico dissimulado. A transferência de participação societária por intermédio de uma seqüência de atos societários caracteriza a simulação, quando esses atos não têm outro propósito senão o de efetivar essa transferência. Em tal hipótese, é devido o imposto sobre ganho de capital obtido com a alienação das ações.” (Acórdão 104-21610 – 25/05/2006).

Convém lembrar que a próprio CARF também entende que simulação enseja a aplicação de multa qualificada, conforme se verifica:

MULTA AGRAVADA. SIMULAÇÃO NÃO CARACTERIZADA. REDUÇÃO. Descaracterizada a simulação ante a inocorrência de qualquer dos requisitos elencados no art. 102 do Código Civil vigente à época da celebração do negócio jurídico, se impõe a redução da multa de lançamento de ofício qualificada ao percentual normal de 75%.

(Acórdão 103-22864. 1º Conselho de Contribuintes. 3ª Câmara. Julgado em 25/01/2007)

                De acordo com a decisão administrativa da Receita Federal do Brasil, proferida especificamente em um caso de simulação em operação de incorporação, alguns elementos foram considerados praticamente necessários para a caracterização ou não de simulação e dissimulação no planejamento tributário realizado pelo contribuinte. Vejamos:

DECISÃO 8.717

Delegacia da Receita Federal de Julgamento em São Paulo / 8a. Turma / DECISÃO 8.717 em 27.01.2006

Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ

INCORPORAÇÃO. COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS. DESCARACTERIZAÇÃO. O que caracteriza legalmente a incorporação é a extinção da incorporada. Se a “incorporadora” perde sua identidade no evento, pois adota a mesma denominação, o mesmo endereço, a mesma atividade e funciona com o mesmo pessoal da suposta “incorporada“, ela é que foi extinta (Lei 06.404/76, art. 227). Comprovado, com base nos elementos constantes dos autos, que a declaração de vontade expressa nos atos de incorporação era enganosa para produzir efeito diverso do ostensivamente indicado, a autoridade fiscal não está jungida aos efeitos jurídicos que os atos produziriam, mas à verdadeira repercussão econômica dos fatos subjacentes. (grifos nossos)

                A partir dessa importante decisão, podemos eleger alguns “Do’s” de elisão fiscal, isto é, alguns elementos fáticos que, quando presentes no caso, contribuem para provar que não houve simulação nem dissimulação no planejamento tributário do contribuinte, principalmente no caso de realocação de receitas entre novas sociedades do grupo econômico, recém criadas. A licitude do planejamento tributário, destarte, pressuporia os requisitos a seguir elencados.

                Inicialmente, em um planejamento tributário caracterizado pela constituição de novas sociedades além da sociedade já existente (matriz) e, portanto, segmentação de receita tributável entre elas, seria desejável a contratação de (novos) funcionários ao invés da realocação de funcionários para as novas sociedades, de forma que fique clara a demissão e não uma transferência de empregados dentro de um mesmo grupo econômico. Esta medida demonstra que, de fato, os funcionários das novas sociedades não estão temporariamente alocados nestas, mas pertencem ao quadro de funcionários da matriz, como também visa descaracterizar que os funcionários trabalham para várias empresas do mesmo grupo.

                Assim, os empregados das novas sociedades não devem possuir qualquer vínculo trabalhista ou mesmo exercer qualquer atividade de fato em outra sociedade que não seja aquela em que efetivamente esteja registrado. É desejável que se segreguem as atividades praticadas pelos empregados de forma exclusiva para a sociedade para qual trabalham, evitando que empregados prestem quaisquer serviços para o benefício de outras empresas do Grupo.

                O mesmo vale para os administradores, gerentes e diretores, que devem ter total autonomia com relação a matriz, atuando apenas em nome e sob o comando de cada uma das novas sociedades. O Conselho de Administração de cada sociedade deve, preferencialmente, ter membros distintos entre si.

                Também é recomendável que as novas sociedades adotem sedes distintas daquela da matriz, de preferência em outros endereços, inclusive, para evitar a caracterização de simulação, isto é, de que a matriz possui, na realidade, vários departamentos de uma mesma empresa (atividade), exigindo a consolidação do resultado, para fins tributários, apenas na matriz.

                Neste sentido, atualmente é quase que inviável que a sede das novas sociedades seja em parte da sala ou andar da matriz, sob o endereço de “parte A” ou “parte B” do imóvel em que a matriz possui sua sede, devendo existir endereços próprios e distintos para cada sociedade. É claro que, a depender do porte da empresa (atividade) e da natureza do objeto social desenvolvido pelas novas sociedades, há possibilidade de um mesmo imóvel servir de sede para duas sociedades, por exemplo, desde que se comprove que, de fato, naquele imóvel existem duas empresas distintas, e não uma só dividida formalmente em duas apenas para repartir o lucro tributável.

                Ademais, ainda que os objetos sociais das novas sociedades sejam todos relacionados com a mesma atividades (por ex., comércio) é recomendável que cada empresa comercialize produto de cada setor exclusivamente, de forma a se comprovar segmentação de atividade entre elas. Por exemplo, somente a Sociedade “A” deve adquirir e comercializar produtos de vigilância, ao passo que os produtos químicos somente devem ser adquiridos e comercializados pela Sociedade “B”.

                Os equipamentos e mercadorias (estoque) da matriz devem ser adquiridos individualmente por cada sociedade, à preço de mercado, embasado em Laudo Pericial, de forma que cada sociedade possua exclusivamente seus equipamentos, evitando o uso comum de equipamentos, maquinários e ferramentas, por parte das novas sociedades. A existência e manutenção de estoques, armazéns e depósitos distintos para as mercadorias mostra-se da mesma forma, relevante para evitar a caracterização de uma simulação. Armazéns e depósitos em locais distintos entre cada uma das sociedades deixa comprovado que não existe integração de estoques entre elas, mas sim, autonomia.

                Por fim, deve-se evitar a celebração de contratos de mútuos entre as novas sociedades do grupo e, se houver, que seja realizado nas mesmas condições que fora celebrado com terceiros independentes (inclusive mesma taxa de juros). É importante que cada sociedade controle separadamente seu caixa e suas despesas, eliminando qualquer fluxo de transferências financeiras entre elas. A independência econômica comprovada por meio de geração de recursos e despesas próprias, sem envolver terceiros, é fundamental para a prova de ausência de simulação e dissimulação.

                Estes, em nosso entendimento, seriam os “Do’s” da elisão fiscal hoje, isto é, requisitos fáticos que, se presentes no caso concreto, auxiliam à comprovação de inexistência de simulação ou dissimulação no planejamento tributário realizado pelo contribuinte.

                É relevante apontar que tais requisitos não são essenciais para que um planejamento tributário seja considerado lícito, até porque sequer estão previstos em lei. Na realidade, são apenas recomendações exclusivamente baseadas em opinião pessoal decorrente de observações de autuações fiscais julgadas favoráveis ao Fisco (como ocorreu no Caso Grendene) e favoráveis ao contribuinte, visando tornar viável a eleição de algumas provas normalmente consideradas relevantes na apreciação dos julgadores administrativos e judiciais para a verificação de simulação (absoluta ou relativa) no planejamento tributário analisado, de forma a auxiliar a caracterização de elementos para julgar um planejamento tributário como lícito ou ilícito, nos dias de hoje.

VI. Conclusões

                Buscamos demonstrar que o Caso Grendene, apesar de ter sido julgado há mais de 20 (vinte) anos, constitui até hoje importante e emblemático precedente em relação aos limites do planejamento tributário no Brasil. Especialmente com relação à realocação de receita de sociedade por meio da criação de novas pessoas jurídicas do grupo, para divisão de lucros tributáveis entre elas, este caso se tornou verdadeiro paradigma jurídico e os elementos probatórios nele suscitados são, até hoje, adotados pela Receita Federal do Brasil.

                Por tal motivo entendemos que seria de extrema importância analisarmos de forma minuciosa os fatos e os argumentos jurídicos presentes em tal leading case de planejamento tributário, tanto na esfera administrativa como na judicial, terminando por tecer nossos comentários em relação a tais fatos e argumentos.

                Para quem duvida da atualidade do Caso Grendene colacionamos recente decisão do CARF no que chamamos de “Caso Kiwi Boats”, em que a divisão de uma sociedade em duas, na mesma área geográfica, com o claro fito de reduzir a carga fiscal, que considerou lícito tal planejamento tributário, conforme infra reproduzido:

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ

Exercício: 2002

Ementa: SIMULAÇÃO – INEXISTÊNCIA – Não é simulação a instalação de duas empresas na mesma área geográfica com o desmembramento das atividades antes exercidas por uma delas, objetivando racionalizar as operações e diminuir a carga tributária. (…)”

(Acórdão nº 103-23357 – 23/01/2008)

                Portanto, no atual contexto histórico-econômico do que chamamos, anteriormente, de “Macartismo elisivo[33], no qual as Fazendas Públicas, ao transformar a legítima economia de tributos, no Brasil, em uma verdadeira “caça às bruxas” culminam por violar direitos fundamentais do contribuinte e princípios e valores basilares e inerentes ao Estado Democrático de Direito , é de vital importância saber quais são os elementos fáticos aceitos pelo Fisco como meios de provas suficientes para caracterizar um planejamento tributário em verdadeira, com o perdão do pleonasmo proposital, elisão fiscal.

            Neste ponto, o Caso Grendene, pela riqueza de fatos e argumentos jurídicos, tanto do Fisco como do contribuinte, mostra-se um importante e ainda atual precedente para delimitar os “Do’s” e “Don’ts” de diversas estruturas empresariais que visam, de forma legítima, mas nem sempre lícita, mitigar a excessiva e injustificável carga tributária que os contribuintes brasileiros, infelizmente, estão sujeitos hoje.

Publicação original: Planejamento Tributário: Análise de Casos (2a
edição).2 ed.São Paulo: MP Editora, 2014, v.1, p. 31-64.



[1] Art. 157 – A pessoa jurídica sujeita à tributação com base no lucro real deve manter escrituração com observância das leis comerciais e fiscais.

§ 1º – A escrituração deverá abranger todas as operações do contribuinte, bem como os resultados apurados anualmente em suas atividades no território nacional

[2] Acórdão nº 103-07.260 de 1986, p. 02.

[3] Art. 16. São pessoas jurídicas de direito privado:

I – as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações;

II – as sociedades mercantis;

III – os partidos políticos

[4] Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias

[5] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 56-57.

[6] REQUIÃO, Rubens. op.cit., p. 59.

[7] Idem, p. 60.

[8]Decreto-lei nº 5.452/43: “Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.

[9] REQUIÃO, inclusive, dá o exemplo de sociedade empresária sem empresa: “duas pessoas, por exemplo, juntam seus cabedais, formam o contrato social, e o registram na Junta Comercial. Eis aí a sociedade, e, enquanto, estiver inativa, a empresa não surge” (REQUIÃO, Rubens. op.cit., p. 61).

[10] Cf. CARRAZZA: “Sob o prisma da certeza ou convencimento, o indício nunca leva a uma conclusão absolutamente segura. De fato, a mais ata probabilidade de certeza não exclui possa haver o erro (…) Por isso, é próprio do indício não concluir certamente, mas apenas inferir, conjecturar. Ele sempre deixa no ar um clima de incerteza” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Ed. Malheiros, 2004, p. 417).

[11] Sobre o tema “Teoria das Provas” vide, dentre outros, TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005.

[12] Acórdão 108-06.991 do 1º CC. 8a Câmara. Publicado no DOU em: 04.09.2002.

[13] Acórdão 107-07.806 do 1º CC. 7a Câmara. Publicado no DOU em: 01.04.2005.

[14] Acórdão 108-06.261 do 1º CC. 8a Câmara. Publicado no DOU em: 12.12.2000.

[15] CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. “Inadimplemento da obrigação tributária na composição do preço predatório e sua relação com a livre concorrência”. In Direito Tributário Atual n. 22, p.235 – 256. São Paulo: Dialética, 2008.

[16] Por ex., a obra clássica sobre o tema: SAMPAIO DÓRIA, Antônio Roberto. Elisão e Evasão Fiscal. São Paulo: LAEL, 1971; também SOUSA, Rubens Gomes de. Pareceres 3. Imposto de Renda. Ed. Póstuma, São Paulo: Resenha Tributária, 1976. Destacamos também a excelente e mais recente coletânea sobre o tema, de ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001; dentre inúmeras outras.

[17] idem, p. 250 – 253.

[18] TORRES, Heleno. Direito Tributário Internacional – Planejamento tributário e operações transnacionais. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, pág. 37.

[19] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol 1 – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2002, p. 139-145.

[20] MIRABETE, Julio Fabbrini. op.cit., p. 139.

[21] Para fins de Direito Penal, o Código Penal brasileiro (Decreto-lei nº 2.848/40) dispõe, em seu art. 18 que o crime é doloso: “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Daí porque se afirma que o Código Penal brasileiro adotou a teoria da vontade quanto ao dolo direto e a teoria do assentimento ao conceituar o dolo eventual (MIRABETE, Julio Fabbrini. op.cit., p. 139).

[22] CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. Civilização do Direito Tributário e seus Impactos na Liberdade de Auto-organização do Contribuinte. In Direito Tributário Atual n. 23. São Paulo: Dialética, 2009, p. 294.

[23] DERZI, Misabel Abreu Machado. O direito à economia de imposto – seus limites (estudo de casos). In YAMASHITA, Douglas (coord). Planejamento tributário à luz da jurisprudência. São Paulo: Lex, 2007, p. 304.

[24] Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

(…)

VI – tiver por objetivo fraudar a lei imperativa

[25] DERZI, Misabel Abreu Machado. op.cit., p. 303.

[26] Idem.

[27] CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. Análise da aplicação da teoria do substance over form aos planejamentos tributários no Brasil. In Revista de Direito Tributário da APET n. 22. São Paulo: MP Editora, 2009, p.35 – 56.

[28] CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. Civilização do Direito Tributário e seus Impactos na Liberdade de Auto-organização do Contribuinte. In Direito Tributário Atual n. 23. São Paulo: Dialética, 2009, p. 301.

[29] BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: perspectivas teóricas e práticas. Revista de Direito Tributário nº 105. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 60.

[30] SCHOUERI, Luis Eduardo. “Presunções simples e indícios no procedimento administrativo fiscal”. In ROCHA, Valdir de Oliveira. Processo Administrativo Fiscal. Vol. 2, São Paulo: Dialética, 1997, p. 85.

[31] Para a justificação desse posicionamento, vide CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. Análise da aplicação da teoria do substance over form aos planejamentos tributários no Brasil. In Revista de Direito Tributário da APET n. 22. São Paulo: MP Editora, 2009, pgs. 53-55.

[32] “INCORPORAÇÃO DE EMPRESA – AMORTIZAÇÃO DE ÁGIO – NECESSIDADE DE PROPÓSITO NEGOCIAL. UTILIZAÇÃO DE “EMPRESA VEÍCULO” – Não produz o efeito tributário almejado pelo sujeito passivo a incorporação de pessoa jurídica, em cujo patrimônio constava registro de ágio com fundamento em expectativa de rentabilidade futura, sem qualquer finalidade negocial ou societária, especialmente quando a incorporada teve o seu capital integralizado com o investimento originário de aquisição de participação societária da incorporadora (ágio) e, ato contínuo, o evento da incorporação ocorreu no dia seguinte. Nestes casos, resta caracterizada a utilização da incorporada como mera “empresa veículo” para transferência do ágio à incorporadora”(Acórdão 103-23.290. 1º Conselho de Contribuintes. 3a. Câmara. Julgado em 05.12.2007).

[33] CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e. Análise da aplicação da teoria do substance over form aos planejamentos tributários no Brasil. In Revista de Direito Tributário da APET n. 22. São Paulo: MP Editora, 2009, p. 37.