Direto ao ponto: no cenário de COVID-19, a falta de prova de substância de empresas e suas atividades pode decorrer de razões de saúde pública e não como principal objetivo de obter vantagem fiscal. Assim, inexistindo prova de reuniões de diretoria, tomadas de decisões e atividades econômicas da empresa em determinada jurisdição, não há necessariamente abuso passível de ser combatido pelas cláusulas anti-abuso internacionais (GAAR, PPT e SAAR). É necessário analisar cada caso e, se o principal motivo da falta de substância não for o de obter uma vantagem fiscal, tais cláusulas anti-abuso não devem ser aplicadas durante o período de quarentena.
Diversos países, sobretudo membros da OCDE, adotaram as chamadas Cláusulas Gerais Anti-Abuso (GAAR) em suas legislações tributárias internas para evitar a evasão fiscal e o chamado planejamento tributário abusivo (“tax avoidance”). Na Convenção Modelo da OCDE, os acordos internacionais devem conter a cláusula do Teste de Propósito Principal (PPT). Há ainda, países que incluem as chamadas Cláusulas Especiais Anti-Abuso (SAAR) em suas legislações fiscais ou nos acordos internacionais que celebram, para combater operações e situações específicas, tais como regras CFC (Controlled Foreign Companies), subcapitalização, limitação de dedutibilidade de despesas (“earning stripping rules”) e cláusulas de combate a instrumentos financeiros híbridos.
A pandemia causada pela COVID-19 afetou significativamente as GAARs, PPTs e SAARs, conforme demonstraremos. Tanto as GAARs como as PPTs possuem um aspecto subjetivo, a intenção do contribuinte de realizar operações ou transações, para se verificar se houve abuso no planejamento tributário. A GAAR da União Européia, por exemplo, define o planejamento tributário abusivo (tax avoidance) quando um arranjo contratual ou societário é colocado em prática para o principal propósito ou como um dos principais objetivos de se obter uma vantagem tributária.
Já as cláusulas PPT exigem que a obtenção do benefício veiculado no acordo contra a bitributação tenha sido um dos principais propósitos de um arranjo ou transação. As SAARs, por sua vez, costumam ser mais gerais, podendo ou não considerar a intenção ou o propósito principal do contribuinte em sua concepção.
Na prática, a intenção subjetiva do contribuinte sobre um arranjo contratual ou transação costuma ser derivada de circunstâncias objetivas, notadamente, decorrente da substância que a companhia, a transação ou o arranjo possuem. A Corte Europeia de Justiça já decidiu que uma sociedade-trampolim utilizada para evitar imposto de renda retido na fonte sobre dividendos ou juros vai depender da verificação de “abuso de direito” (caracterizada pela GAAR) e, em especial, com relação à administração da companhia, de suas demonstrações financeiras, da estrutura de seus custos e despesas efetivamente incorridos, de seus empregados e funcionários e das instalações e equipamentos que ela possui e utiliza em suas atividades.
Ou seja, a existência de substância é fundamental para se evitar a aplicação das cláusulas anti-abuso (sejam elas GAAR, PPT ou SAAR) no direito tributário doméstico e internacional. Todavia, em razão da COVID-19 pode haver a falta de substância em razão da impossibilidade de pessoas (funcionários e empresas) desenvolverem seus negócios e atividades econômicas em determinado país e/ou porque estão proibidas de viajar a trabalho para determinado destino, em razão da quarentena e regras sanitárias. Um exemplo são as reuniões de diretoria, na qual diretores se reúnem fisicamente em determinado país periodicamente (trimestralmente, semestralmente) para tomar as decisões e votarem sobre a agenda da companhia e seus negócios.
Todavia, se impedidos de viajar, essa reunião deixa de ser realizada naquele determinado país, passando a ser feita vitualmente, deixando de dar substância para essas reuniões como requerido pela lei doméstica ou com base nos acordos internacionais (o “local da tomada de decisões efetivas da empresa” é a residência da companhia e pressupõe reuniões físicas naquele território).
Aqui é importante distinguir as três situações possíveis:
- Se antes da COVID-19 a companhia atendia os requisitos e provas de substância, mas durante a pandemia deixou de ter total ou parcialmente substância, isso significa que a ausência de substância não foi “com o principal propósito ou dos principais propósitos de obter uma vantagem tributária”. Na verdade, isso decorreu da proteção da saúde pública e individual dos envolvidos. Nesse caso, portanto, a falta de substância seria em razão da proteção da saúde pública e privada, o que é justificável.
- Se, uma companhia não atendia os requisitos e provas de substância antes da COVID-19 e, durante a pandemia, também não possui substância ou provas suficientes, então a questão reside em saber se essa substância foi ausente em razão da pandemia. Todavia, parece ser menos defensável que a ausência de substância decorreu da proteção da saúde pública e privada, em que pese isso, não necessariamente, implique dizer que um dos principais ou o principal propósito da falta de substância foi o de obter uma vantagem tributária. Pode haver uma razão empresarial válida, basta ser provado pelas partes.
- E, por fim, se uma companhia está sendo constituída durante a COVID-19, ficará mais difícil ter substância e comprová-la, em razão das limitações de tráfego de pessoas, locação e utilização de instalações físicas e demais impactos da quarentena. Essa situação pode ser interpretada de forma análoga com a recomendação da OCDE sobre a influência da COVID-19 na aplicação dos acordos internacionais (objeto do nosso último artigo do mês passado): isto é, qualquer consequência em razão de restrições trazidas pela COVID-19 são negadas, ou seja, anuladas, pois são consideradas situações excepcionais e temporárias. No entanto, deverá ser observada com cuidado a definição de “excepcional” e “temporária”, caso o período de quarentena se estenda consideravelmente.
Há ainda possíveis variáveis para as situações acima referidas decorrentes da natureza das medidas restritivas trazidas pela COVID-19, notadamente:
- Restrição decorrente de medida pública: se for imposta por governos, restrições de viagens aéreas e trabalho em escritórios, obviamente a falta de substância não terá sido para obter vantagem tributária;
- Decisão decorrente de medida privada: decisão de entidades privadas, como companhias aéreas ou hotéis, que acarretem a redução de seus produtos e serviços. Certas condições de substância poderão ser afetadas e, portanto, o propósito principal de obter vantagem tributária parece não ser verificado; e
- Restrição decorre de decisão do próprio contribuinte: se em razão da política interna da empresa, por exemplo, há uma proibição dos funcionários trabalharem em determinado país ou adentrar as instalações da sede da empresa. Nesses casos, mesmo que por política interna, a falta de substância pode objetivar a proteção da saúde pública, e não a obtenção de uma vantagem tributária.
Em síntese, num cenário de incertezas causado pelo COVID-19, a falta de substância ou de sua prova, pode decorrer de razões de saúde pública, sejam decorrentes de medidas governamentais ou de políticas internas de melhores práticas e cautela preconizadas pelas empresas. Assim, viagens internacionais, estadias em hotéis, reuniões nas sedes das empresas podem restar comprometidas por muito tempo ainda.
Mesmo não havendo posicionamento oficial da OCDE, da União Europeia e da ONU sobre esse tema em específico, isso não significa que, inexistindo prova da substância das reuniões, tomadas de decisão e atividades econômicas da empresa em determinada jurisdição, há abuso passível de ser combatido pelas cláusulas GAAR, PPT e SAAR internacional ou localmente. Será necessário analisar individualmente cada caso e, na maior parte das vezes, como o principal motivo não será de obter uma vantagem fiscal, tais cláusulas não devem ser aplicadas durante o período de quarentena.