Direto ao Ponto: a Receita Federal do Brasil (RFB) tem oscilado quanto à aplicação do
precedente do STF que fixou a incidência do ISS sobre o licenciamento de uso de software, seja
ele customizado ou de prateleira, ora tratando os royalties como remuneração de serviços
prestados, para fins de apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL na sistemática do lucro
presumido, ora como royalties propriamente dito, para fins de IRRF nas remessas para o
exterior. Sem qualquer coerência entre os entendimentos fazendários nos dois temas, resta
saber o que será fixado quanto ao PIS/COFINS-Importação e dedutibilidade dessas despesas.
A Receita Federal do Brasil ainda tenta entender a “nova” natureza do software e a tributação
sobre o seu licenciamento. Ou pelo menos é o que finge fazer.
A celeuma atual nasceu dos julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) das Ações
Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 1.945 e nº 5.659 e do Recurso Extraordinário (RE) nº
688.223, finalizados em fevereiro de 2021, nos quais se avaliou se no licenciamento/comercialização
de software deveria incidir ICMS ou ISS.
Naquela ocasião, o STF entendeu obsoleta a distinção até então feita entre o software de
prateleira, espécie de mercadoria porque produzido e distribuído em massa, e o customizado,
resultante da prestação de um serviço por meio do qual é confeccionado atendendo às
particularidades de seu usuário. Sobre a comercialização do software de prateleira incidia o ICMS,
enquanto o customizado era objeto de tributação pelo ISS.
Porém, dada a evolução das relações sociais e o incremento da tecnologia, os softwares passaram
a ser transmitidos via download, através de sua aplicação diretamente em dispositivos móveis,
por meio do modelo de pagamento via acesso temporário ou condicionado a uma assinatura periódica,
sem contar, ainda, as suas constantes e muitas vezes obrigatórias atualizações.
Dado esse novo cenário, o Plenário do STF voltou a se debruçar sobre o tema, considerando, dentre
outros argumentos e dispositivos legais, a edição da Lei Complementar (LC) 116/2003, da qual consta
que tanto o licenciamento de uso, quanto os contratos de confecção e programação de software
estariam sujeitos ao ISS.
Destacamos que todo software é comercializado via contrato de licenciamento de uso,
independentemente de ser customizado ou de prateleira. Isso porque esse contrato relaciona-se ao
intangível e disciplina a propriedade intelectual por trás do programa, o acesso ao seu código fonte,
dentre outros aspectos.
Assim, entre 2020 e 2021, quando o STF foi chamado a responder uma única questão objeto daquelas
ADIs e RE, qual seja: o ICMS pode ser exigido sobre o contrato de licenciamento de uso de
software?
Naquela ocasião, o Supremo chamou atenção para o trabalho humano por trás do software, seja ele
de prateleira ou customizado, haja vista que ambos decorrem de investimentos na
preparação/programação, atualizações e constantes aprimoramento, até mesmo por questões de
segurança, atividades essas que se aproximariam mais de uma obrigação de fazer que, por
sua vez, atrairia a tributação pelo ISS.
Ademais disso, a opção pelo ISS estaria sintonizada às recomendações do direito comparado em
relação à tributação da economia digital, evitando-se discriminação entre operações eletrônicas
e não digitais, além de privilegiar a segurança jurídica ao se manter intacta aquela mencionada
previsão da LC 116, depois de 17 anos de sua promulgação.
Assim, o STF optou por eleger o ISS como tributo incidente sobre qualquer licença de uso de
software, seja este customizado ou não, independentemente de como sua transferência se
desse, se física ou eletrônica.
Vejam, portanto, que o STF relativizou o conceito de que as obrigações de fazer não poderiam
ter por objeto os intangíveis e o licenciamento de uso de software (de prateleira ou customizado)
passou a ser tributado exclusivamente pelo ISS.
Da fixação da incidência do ISS sobre o licenciamento de uso do software deriva uma evidente
equiparação desse licenciamento a um serviço para fins tributários, AINDA QUE os royalties
que remuneram esse licenciamento não se refiram a uma obrigação nem de dar, nem de fazer.
A relativização do conceito de prestação de serviço pelo STF, admitindo a possibilidade de que
recaia sobre um intangível, também autoriza a conclusão de que é o royalty quem remunera a
prestação de serviço, enquanto obrigação de ceder (o intangível).
Portanto, se a natureza do licenciamento de uso de software é de serviço, atraindo a
incidência do ISS, nos termos em que decidido pelo STF, não se pode ignorar essa mesma
natureza para outros fins tributários.
No entanto, não é o que nos parece ter feito a RFB por ocasião da Solução de Consulta COSIT
nº 75/2023 (SC 75/2023), de acordo com a qual “os valores (…) remetidos a residente ou
domiciliado no exterior, pelo usuário final, para fins de aquisição ou renovação de licença de
uso de software, independentemente de customização ou do meio empregado na entrega,
caracterizam royalties e estão sujeitos à incidência de Imposto sobre a Renda na Fonte (IRRF),
em regra, sob a alíquota de 15% (quinze por cento)”.
O entendimento da RFB ignora aquele fato de que os “royalties”, nos termos em que definido
pelo STF, remuneram “serviços”.
Vejam que a Suprema Corte, relativamente aos softwares de prateleira, que eram o exato
objeto daquela SC 75/2023, ponderou que, em que pese exista a transferência de um bem
(intangível), são eles (softwares de prateleira) objeto do ISS, em razão da constatação de que
advêm de operação complexa que envolve, além dessa obrigação de dar um bem digital, uma
obrigação de fazer consubstanciada no esforço intelectual direcionado para a construção de
um programa de computador e nos demais serviços correlatos (help desk, disponibilização de
manuais, atualizações tecnológicas). E essa obrigação de fazer prevalece àquela de dar.
Em que pese a definição da natureza do contrato de licenciamento de uso de software para
fins tributários, sua caracterização para fins civis não é alterada (!) e chama a observância do
quanto disposto na Lei nº 9.610/1998 (Lei dos Direitos Autorais), de acordo com a qual
programas de computador são obras intelectuais, criações do espírito, protegidas por aquela
Lei.
Aquela mesma Lei dos Direitos Autorais dispõe que o uso dos programas de computador será
objeto de contrato de licença de uso, este remunerado por meio de pagamento de royalties
(art. 22 da Lei nº 4.506/1964).
Sob a ótica do direito civil, isso significa dizer que o software, enquanto produção intelectual,
está protegido pelo direito autoral, o que significa dizer que está protegido o direito sobre a
distribuição e o uso dessa obra. Assim, em caso de licenciamento do uso do software, o
licenciado não está adquirindo esse programa, não lhe sendo concedidos amplos direitos
sobre o bem. Ao contrário, o uso desse bem é disciplinado pelos termos da licença de uso e
pode ser realizado dentro dos seus estritos limites.
No entanto, isso não afasta o fato de que, para fins exclusivamente tributários, esse
licenciamento tenha, como já detalhado, natureza de prestação de serviço e os respectivos
royalties representem nada mais do que a contrapartida – remuneração – por estes serviços
prestados.
Assim, tal como em fevereiro de 2023, por meio da Solução de Consulta nº 36, a RFB reviu o
seu posicionamento quanto à natureza jurídica das licenças de uso de software, de modo que
as receitas percebidas por entidades sujeitas à tributação pelo lucro presumido passaram a
aplicar o percentual de presunção de 32% sobre as receitas oriundas do licenciamento,
percentual esse relativo aos serviços em geral, a mesma adequação deveria ter sido
observada quando da resposta acerca da tributação na fonte dos royalties remetidos ao
exterior.
Ocorre que a RFB, na SC 75/2023, subverte a natureza jurídica do licenciamento de uso de
software para fins tributários, nos termos em que fixada pelo STF, de forma que sua
remuneração, qualificada como royalties, estaria sujeita à incidência do IRRF sob a alíquota de
15%.
Assim, em que pese a RFB tenha desconfigurado a natureza dos royalties para fins de
determinação da base de cálculo do IPRJ e da CSLL na sistemática do lucro presumido, o
mesmo não se observou em se tratando do IRRF sobre tais remunerações remetidas para o
exterior.
Aliás, por ocasião da SC 75/2023, a RFB afirma que a mera inclusão da concessão de licença de
uso de software dentre as atividades enquadradas como serviço para fins de incidência do ISS,
nos termos da LC 116/2003 e em que suportado pelo STF, não seria suficiente para desconfigurar
a natureza de royalties dos pagamentos em questão, especialmente para a aplicação da legislação
federal relativa à incidência do IRRF.
Não guarda qualquer coerência as Soluções das Consultas n os 36 e 75, ambas de 2023! Mais do
que isso, não guarda qualquer coerência o entendimento fazendário com o que fixado pelo
Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade!
Cenas dos próximos capítulos: Nos próximos meses deveremos assistir à atuação da RFB no
que diz respeito à tributação dos royalties (remetidos ao exterior) pelo PIS/COFINS-Importação
e à dedutibilidade desses valores da base de cálculo do IRPJ e da CSLL da entidade brasileira.
Afinal, em se tratando de royalties, as remessas realizadas para o exterior por entidade brasileira
em contrapartida ao licenciamento de uso de software, seja ele de prateleira ou customizado, sofrem
severas restrições à dedutibilidade da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (arts. 363 e 365 do Decreto
nº 9.580/2018). Por outro lado, tais remessas não são objeto de tributação pelo PIS/COFINS-Importação,
haja vista – supostamente – não remunerarem prestação de serviço, nem aquisição de bem corpóreo.
Resta aos contribuintes viver sem coerência e com a Espada de Dâmocles aterrorizando seus dias e
operações.