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Coisa julgada: STF bagunça o meio de campo

Direto ao ponto: embora ainda se aguarde a formalização do acórdão, a decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF) de relativizar a coisa julgada já enviou ondas sísmicas
sobre o mercado, impondo novas cautelas a todos. Por mais que seja algo
compreensível a equalização do tratamento de contribuintes, evitando que alguns
poucos sortudos tenham uma eterna vantagem competitiva por contarem com
decisões favoráveis diferentes do que oportunamente veio a ser entendido pela
própria Corte, permitir que o julgado tenha efeitos retroativos cria cenários insólitos
para alguns.

O que estava em jogo: objeto dos recursos julgados nos temas 881 e 885
Conforme tivemos a oportunidade de discutir em recente evento promovido por nosso
escritório com nosso colega constitucionalista Rodrigo Brandão, no final de 2022, após
anos de espera, o STF julgou conjuntamente e no regime de repercussão geral dois
recursos extraordinários que tratavam de teses assim resumidas:
Tema 881 = Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de
julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a
constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do
controle incidental, por decisão transitada em julgado.
Tema 885 = Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de
constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato
continuado.
Em ambos os recursos, empresas defendiam o direito de permanecerem protegidas
por decisões definitivas que lhes garantiam, desde o final dos anos 90, o direito de não
recolherem a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), ainda que o mesmo STF
tenha reconhecido a constitucionalidade da cobrança em 2007.
Por outro lado, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) defendia que, por
mais que aquelas empresas tenham sido vitoriosas em ações próprias, tal veredicto
haveria de ser revertido automaticamente, isso é, sem sequer a necessidade de
ajuizamento de ação rescisória, pois o STF veio posteriormente a decidir como legítima
a cobrança da CSLL.
Os julgamentos são muito importantes porque afetam não apenas as empresas parte
dos recursos, mas quaisquer contribuintes que possuam ou venham a possuir decisões
judiciais transitadas em julgado – a chamada coisa julgada, que sempre foi considerada
uma garantia fundamental protegida pela Constituição como cláusula pétrea.
Teses firmadas:

Embora ainda precisem ser formalizadas em acórdão final, as teses firmadas pelo STF
nos temas 881 e 885 já foram assim sumarizadas pelo tribunal:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à
instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa
julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato
sucessivo.

  1. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral
    interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em
    julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a
    noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”
    O veredicto foi alcançado por maioria de votos, tendo sido negada a sua limitação no
    tempo (modulação). As principais consequências podem ser assim compreendidas.
    1) A coisa julgada nunca será afetada por julgamentos sem repercussão geral
    O objeto do tema 885 se referia à possibilidade de uma decisão do STF em controle
    incidental de constitucionalidade, ou seja, sem eficácia geral e irrestrita (erga omnes),
    vir a justificar a revisão de decisão anterior, individual e irrecorrível, que com ela se
    mostrasse incompatível, sem o ajuizamento de ação rescisória.
    Para essa situação, o STF acabou entendendo que a coisa julgada individual deve
    prevalecer, mesmo que contrária a julgamento mais recente da Corte (sem
    repercussão geral) e ainda que se refira a tributos periodicamente exigíveis – ali
    referenciadas como relações jurídicas tributárias de trato sucessivo (ocasiões em que a
    incidência fiscal se repete no tempo e alcançaria inclusive fatos posteriores ao
    julgamento do STF contrário à coisa julgada).
    Logo, se o contribuinte possuir coisa julgada livrando-lhe total ou parcialmente de
    tributos, mesmo aqueles repetitivos e onipresentes como a CSLL, IRPJ, PIS e COFINS,
    tal economia permanece válida ainda que o STF se posicione de forma diferente. O
    principal alerta: o julgamento dissonante do STF não pode se dar sob o regime da
    repercussão geral, pois este implica que mesmo veredictos dados em julgamento de
    recursos isolados possuem efeito de interpretação da Corte sobre a legislação em
    questão (v. adiante).
    2) A coisa julgada é automaticamente suspensa por decisão do STF em ação direta ou
    em julgamento com repercussão geral, respeitada a anterioridade e a
    irretroatividade
    No julgamento do Tema 881 caiu um alicerce da segurança jurídica: a coisa julgada.
    Até hoje, entendia-se que uma decisão irrecorrível, que sequer poderia ser atacada em
    ação rescisória, era o cúmulo da imutabilidade.
    Com o veredicto do STF, contudo, sendo o julgado dissonante relativo a tributos de
    trato continuado, a coisa julgada só poderá ser tida como sinônimo de definitividade

se e quando convalidada pelo STF em julgamentos de ações diretas ou sob o rito da
repercussão geral.
Logo, não basta ter uma decisão positiva transitada em julgado. Ela precisa ser
ratificada pelo STF. Considerando que essa decisão é inédita e está sendo tomada em
2023, todos os casos tributários podem ser divididos em três categorias:
2.1) Coisa julgada definitiva: já convalidada pelo STF em ação direta ou sob
repercussão geral
Nessa primeira categoria podemos enquadrar o cenário mais otimista. Se o
contribuinte possui decisão favorável e definitiva e esta se apresenta em sintonia com
o que o STF já disse, antes de 2023, quando tenha analisado recursos com eficácia
geral, o contribuinte tem a certeza de que sua situação não será alterada.
2.2) Coisa julgada potencialmente definitiva: a mesma tese ainda não foi analisada
pelo STF em ação direta ou sob repercussão geral
Por outro lado, caso a decisão do contribuinte sobre apuração de tributos de trato
continuado ainda não foi avaliada pelo STF, a eficácia da decisão individual pode vir a
ser suspensa se e quando tal veredicto sobrevier e for incompatível com aquela (se for
compatível, o caso passa a ser contemplado pela primeira espécie acima – 2.1. coisa
julgada definitiva).
A interpretação do STF foi no sentido de que, quando a coisa julgada se torna
incompatível com julgamento em repercussão geral ou ação direta, este julgamento é
aplicado ao caso como se se tratasse de numa nova norma, o que impôs que os
Ministros tenham reconhecido que a irretroatividade e a anterioridade (anual ou
nonagesimal) se aplicariam. Ou seja, o contribuinte até pode vir a ter sua vitória
desfeita, mas só voltaria a aplicar a legislação tal qual decidida pelo STF a partir dali,
sem possibilidade de cobranças sobre o passado.
Curioso? Pois o terceiro cenário é o mais drástico:
2.3) “Coisa desjulgada”: se a mesma tese em que o contribuinte saiu vitorioso já foi
julgada pelo STF antes de 2023, em ação direta ou sob repercussão geral, mas o
veredicto da Corte lhe foi desfavorável, é como se ela nunca houvesse existido
Por fim, para incredulidade de praticamente todo o mercado, o STF acabou por decidir,
também por maioria de votos, não aplicar a chamada modulação no julgamento dos
temas 881 e 885, o que na prática significaria que a interpretação agora firmada só
valeria daqui em diante.
Dito de outra forma: ainda que tenha criado apenas em 2023 a interpretação de que
julgamentos de ações diretas e em repercussão geral suspendem automaticamente
decisões definitivas anteriores em sentido diverso, tal raciocínio aplica-se igualmente a
situações passadas e futuras.

Logo, tal qual as duas contribuintes parte dos recursos extraordinários objeto dos
temas 881 e 885, quaisquer contribuintes que se vejam na situação de terem coisas
julgadas favoráveis mas incompatíveis com teses já julgadas pelo STF (em decisões de
caráter erga omnes), como era ali o caso da CSLL, passaram a ser devedoras de
tributos que até o mês passado eram unanimemente entendidos como inexigíveis, pois
protegidos por direito insuperável (coisa julgada), com nível de cláusula pétrea.
Pegando o caso concreto da CSLL, como em 2007 uma ADI apontou ser devida a
contribuição, e a União à época autuou e iniciou a cobrança do tributo (por mais que à
época não existisse julgado sequer similar ao atual), as partes envolvidas passaram
imediatamente a ser devedoras de tributos acumulados por 16 anos!
Este último cenário em que a coisa julgada magicamente passa a ser considerada
inexistente, com efeitos retroativos, só evitaria que o contribuinte tenha de recolher
tributos outrora alcançados pela decisão desfeita se tais débitos já estiverem extintos
pela decadência.
O futuro: mais insegurança
Não há como negar a lógica de se buscar equalizar o tratamento fiscal de
contribuintes, especialmente num país com a carga tributária relevante como o nosso.
Entre admitir que uma decisão judicial definitiva venha a ser um dia desfeita, ou
permitir que alguns tenham vantagem competitiva eterna, meramente por contarem
com uma decisão excepcional, a Corte privilegiou a isonomia.
Contudo, a não modulação é algo extraordinariamente surpreendente, especialmente
considerando o uso amplo e até descontrolado do mecanismo em favor da
arrecadação em tantos outros temas.
Dada a repercussão negativa do veredicto, alguns Ministros do Supremo fizeram
questão de publicamente afirmar que o julgado teria alcance limitado a tributos de
trato sucessivo. Mas, ao menos até que o acórdão seja formalizado, não há certeza
quanto a seus limites.
Por ora, brotam incertezas e impõem-se cautelas, por exemplo:

  • Reflexos contábeis: a CVM rapidamente fez pública orientação no sentido de
    empresas afetadas pela tese, notadamente as que se encontram no péssimo terceiro
    cenário a fazer a divulgação de tais efeitos;
  • Reflexos sobre operações de M&A: acaso alguma dessas empresas tenha sido objeto
    de transação de venda, espera-se uma verdadeira batalha entre vendedores e
    compradores quanto à responsabilização dos passivos tributários, eis que embora
    relativos ao passado podem ser interpretados como decorrentes de uma decisão
    tomada apenas em 2023;
  • Reflexos sobre teses julgadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ): ainda que o
    julgamento do STF se refira expressamente a decisões tomadas em ações diretas ou
    sob repercussão geral, típicas daquele tribunal, existem teses ligadas a tributos de
    trato sucessivo que se encerram na análise da legalidade, de competência do STJ, que
    por sua vez também tem temas julgados sob mecanismo de uniformização de
    jurisprudência (repetitivo). Podemos esperar que o STJ adote a mesma lógica e
    também passe a reverter coisas julgadas? Melhor nem perguntar…
  • Reflexos sobre outras áreas do direito: se a lógica do STF foi privilegiar a isonomia
    em detrimento da coisa julgada, tendo tal raciocínio se alicerçado na proteção contra a
    concorrência desleal e uma equiparação do veredicto erga omnes do STF a uma nova
    norma, não falta nenhum ingrediente para que a mesma receita seja aplicada a muitas
    outras áreas do direito em que relações continuadas podem estar sendo afetadas por
    uma decisão judicial tida por incompatível. Imaginemos uma empresa que possui coisa
    julgada excepcional em temas ambiental, de propriedade intelectual, ou concorrencial,
    por exemplo. A interpretação contraditória em ação direta ou repercussão geral
    deveria igualmente impedir que tal empreendimento desfrute de uma vantagem
    insuperável sobre concorrentes. Mesmo em relação a indivíduos, decisões judiciais,
    ainda que definitivas, mas contrárias a posição mais ampla do STF não poderiam
    permitir exceções em matérias de caráter penal, previdenciário ou administrativo, por
    exemplo.
    Direto ao ponto: O contribuinte que possuir decisão própria favorável, transitada em
    julgado, em tese tributária de trato continuado, independentemente de ajuizamento
    de ação rescisória pela procuradoria competente:
    a) está seguro se a mesma tese tenha sido objeto de decisão compatível do STF,
    em ação direta ou sob repercussão geral;
    b) pode ver os efeitos de sua ação cessarem apenas se e quando sobrevier
    decisão do STF em sentido contrário, mas a cobrança dos tributos só iniciaria
    após respeitada a anterioridade, nunca retroagindo;
    c) tem risco provável de ser cobrado se deixou de pagar tributos com base em
    decisão própria, mas a mesma tese já conta com decisão contrária do STF.

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