Direto ao ponto: Após sucessivos aumentos no preço dos combustíveis ganharem as manchetes e alimentarem o fantasma da inflação, observamos medidas variadas do governo tentando amenizar a repercussão midiática e segurar a revolta popular, mais assustadora nas ameaças de nova greve de caminhoneiros. Apenas em 2021 já tivemos substituição na presidência da Petrobrás e até medidas provisórias alterando regras tradicionais na distribuição de combustíveis ao mercado. Mas um tema que sempre retorna à discussão é a incidência do ICMS e a alegada necessidade de sua reforma. Afinal, seria esse imposto estadual um vilão nessa história?
De início: o ICMS é apenas parte da carga fiscal a que sujeitos os combustíveis, que por sua vez é apenas parte da composição do preço
Para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente errada! A frase atribuída a Henry Louis Mencken poderia abrir uma lista de exemplos de propostas de reforma tributária mal sucedidas, em que pretensas boas intenções são a porta de entrada para novos problemas, que se somam aos originais, não resolvidos.
No caso dos combustíveis, qualquer reforma do ICMS não significará o fim das oscilações de preços, eis que estes são compostos de muitos outros fatores. Verdade seja dita, o ICMS é parte relevante do preço, mas não é capaz de sozinho estabilizar uma precificação que depende de demais custos de produtores, importadores, distribuidores e revendedores, inclusive com outros combustíveis e tributos (em especial, as contribuições de competência da União Federal, PIS/COFINS e CIDE).
Sendo o ICMS o tributo que em essência onera o comércio (a “circulação de mercadorias” contida no nome do imposto), e considerando que sua alíquota efetiva é, salvo exceções, próxima de 20% e, não raro, acima de 30%, é fácil enxergar nesse componente boa parte do custo refletido nas bombas dos postos de abastecimento.
Contudo, não podemos confundir causa e efeito. O ICMS é alto, mas não é essencialmente mais caro nos combustíveis do que em demais mercadorias. Aliás, a energia elétrica é igualmente essencial, universalmente consumida e similarmente onerada. Dada a onipresença do insumo no mercado (explicitamente demonstrada pelo caos que alguns dias de desabastecimento causaram em 2018), a arrecadação do setor ainda deixou os cofres estaduais praticamente dependentes dele, de modo que não se pode imaginar qualquer redução sem efeitos drásticos nas contas públicas.
O (maior) problema do ICMS nos combustíveis: complexidade (e decorrente insegurança)
A tributação do comércio e do consumo não é novidade, sendo talvez uma das mais antigas fontes de arrecadação dos Estados. Mas não por isso ela é simples. Assumida a necessidade de se contribuir à máquina pública, é quase instintivo se imaginar como justa a arrecadação de um valor proporcional ao valor da mercadoria sendo negociada. Só que esse tributo acabaria incidindo “em cascata”, ocorrendo em cada elo da cadeia a cobrança de imposto sobre um preço que já foi impactado pelo imposto pago pelo fornecedor da mercadoria revendida ou da matéria prima que compõe o produto comercializado, com piores efeitos naquelas cadeias longas, em detrimento do consumidor final.
O que o ICMS tentou replicar no Brasil foi a solução estrangeira de se buscar como base o “valor agregado” por cada participante da rede de distribuição. No caso, permite-se que do valor do imposto apurado sejam descontados créditos das aquisições anteriores, destacados nas notas fiscais dos fornecedores (por isso a não cumulatividade do ICMS é do tipo apurada pela metodologia “imposto contra imposto”). Como já se observa, o combate à cumulatividade se fez ao preço de uma maior complexidade na apuração e recolhimento do imposto.
No caso dos combustíveis, a metodologia convencional do ICMS exigiria que os Estados fiscalizassem milhares de postos varejistas. Para aprimorar e facilitar a auditoria, nossa Constituição permitiu que o ICMS incidisse sob a chamada substituição tributária (ICMS-ST). Produtores e importadores (contribuintes substitutos) recolhem o ICMS sobre os valores de suas vendas assim como antecipam o ICMS-ST das vendas a serem realizadas pelos distribuidores e varejistas (substituídos).
Isso significa, contudo, que o ICMS-ST é calculado sobre preços fictícios, pois a arrecadação ocorre antes que as operações distribuidor-varejista e varejista-consumidor ocorram. No início dos anos 2000 (ADI 1851), o Supremo Tribunal Federal (STF) dispensou ressarcimentos ou cobranças adicionais se o preço efetivo praticado se mostrasse inferior ou superior ao presumido. Contudo, menos de quinze anos depois, o mesmo STF veio a definir que os Estados devem sim ressarcir (e podem cobrar) os contribuintes pelas eventuais diferenças ocorridas. Mais complexidade à apuração do imposto.
A dificuldade do ICMS é ainda mais inflacionada pelo fato de, no caso de combustíveis derivados do petróleo, o imposto ser do Estado onde ocorrer seu consumo, mas nos demais (álcool e biodiesel), esse tributo é dividido entre Estado de produção e de consumo, levando-se sempre em conta que cada uma das 27 unidades federadas tem competência para definir alíquotas próprias, e via de regra a definem em valores por metro cúbico, buscando acompanhar o valor de mercado do produto, o que significa constante atualização. Por último, recorde-se que os combustíveis com que abastecemos nossos veículos são essencialmente uma mistura de mais de um tipo (derivados e não derivados de petróleo) e não raro com origens interestaduais distintas. Ou seja, a apuração do ICMS é um exercício complexo e difícil até de ser resumido num texto como o presente.
Na prática, o imposto, além de representar na média 24% do preço do combustível (e em alguns casos supere 30%), é fonte inesgotável de contencioso e contingências, desencorajando e impondo custos aos players do mercado, além de onerar a auditoria e arrecadação pelos próprios Estados.
Conclusão: ICMS não é o vilão, mas um “inocente útil” à confusão nos preços
Como se observa, sendo os combustíveis mercadorias valiosas e de intensa circulação, o ICMS a eles atrelado não deixa de ser fator relevante em seu preço e na arrecadação pelos Estados. Mas esse fato em si não é suficiente para imprimir ao imposto estadual o caráter de suspeito usual de qualquer aumento. Dependentes que são da arrecadação atrelada a esse importante setor, os Estados estão inevitavelmente interessados em manter a correlação de preço a cada ajuste promovido por outros envolvidos.
E, tratando-se de commodity exposta a flutuações mundiais de valor, esses ajustes são inevitavelmente presentes. Na prática, o que se percebe é que o combustível tem de fato muito de seu preço composto pelo ICMS, mas as variações do preço da bomba dos postos têm muitos mais fatores em jogo. Nesse tema, o ICMS tem papel de mero coadjuvante, eis que pela sua própria sistemática acompanha o valor do bem que onera, mas não por isso está ele alheio às críticas, havendo muito que se aprimorar em termos de segurança jurídica e simplicidade operacional.
Propostas saudáveis ao ICMS nesse mercado: o bom exemplo do PLP 16
Ainda em fevereiro deste ano, quando a sombra de uma possível nova greve dos caminhoneiros ganhou repercussão, o governo federal submeteu ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar 16 (PLP 16).
Em apertada síntese, o PLP 16 regulamenta um artigo há décadas inserido na Constituição Federal que autoriza os Estados a arrecadarem o ICMS pela chamada monofasia. A exemplo do que ocorre com o PIS/COFINS, a monofasia do ICMS significaria que o imposto incidiria uma única vez, no início da cadeia comercial (refinaria ou importadora), eliminando-se a complexidade do ICMS-ST, da não cumulatividade e dos hoje inescapáveis pedidos de ressarcimento ou cobranças complementares, eis que não haveria mais preço presumido ou mesmo incidência a cada elo da cadeia.
Mais que isso, o PLP previa que as alíquotas do ICMS seriam uniformes, independentemente do Estado de origem ou destino/consumo das mercadorias, o que também eliminaria uma complexidade atualmente desafiadora, mesmo para servidores estaduais. O PLP prevê mecanismos que reduzem a necessidade de Estados atualizarem as alíquotas específicas do imposto a cada poucas semanas, contribuindo para alguma estabilidade na formação de preços. Por último, o projeto é elogiável por aproveitar os sistemas já utilizados para arrecadação do ICMS, sem solavancos na mudança de regime do atual para o proposto.
Infelizmente, o projeto anda devagar no Congresso, tendo a urgência originalmente conferida a ele sido logo retirada, havendo ainda emendas que desnaturam a simplicidade e segurança inicialmente presentes.
Cabe aguardar como o tema se desenrolará, sendo certo que existe uma boa oportunidade de o Congresso ofertar ao mercado uma amostra de reforma tributária possível, rápida e estabilizadora, que tem como únicos perdedores os Estados que hoje demasiadamente oneram os combustíveis comparativamente à média nacional.
Direto ao ponto: Como tributo que onera todo comércio e representa 25% ou mais do preço final das mercadorias, o ICMS inescapavelmente é relevante a qualquer precificação, sendo sim ator relevante na crise dos preços de combustíveis, embora não único. Como o setor representa significativa fonte de arrecadação dos Estados, existe uma pressão natural para que estes acompanhem oscilações no preço da commodity e retroalimentem a instabilidade de valores. Contudo, ainda que em si não signifique o fim da oscilação de preços, eis que ela depende de outros fatores, o peso da complexidade do ICMS pode ser imensamente aliviado se nosso Congresso endereçar (i) a incidência monofásica há décadas permitida pela Constituição, (ii) a uniformização de alíquotas entre as 27 unidades federadas e (ii) base de cálculo fixa. Com isso, ainda que continue representando parte da equação, a arrecadação deixa de ser fonte de complexidades, insegurança e, consequentemente, custos que contribuem para o agravamento dos preços.