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Novo contencioso na tributação de dividendos

Direto ao Ponto: Estamos caminhando, ao que tudo indica, para a implementação da tributação de dividendos no Brasil. Toda mudança, porém, impõe certa adaptação por aqueles que se sujeitam às novas regras. A implementação da tributação de dividendos desconsiderando um estoque de lucros pré-existente às novas normas, mas ainda não distribuídos aos investidores, impõe tratamento desigual aos contribuintes, além da afrontar os princípios da legalidade e da segurança jurídica. Ao desconsiderar o cálculo do custo do capital e da estimativa de remuneração da fonte de financiamento, o Governo Federal torna inseguro o ambiente de negócios no Brasil, afastando novos investimentos e abrindo campo para o nascimento de um novo contencioso tributário, detalhado nas linhas a seguir.

Foi apresentada, pelo Governo Federal, a 2ª fase da Reforma Tributária focada no imposto de renda.

Um dos pontos de grande controvérsia e que tem gerado bastante polêmicas nos mercados diz respeito à tributação de dividendos.

Há anos o Brasil é um país que não tributa dividendos e que, em contrapartida, tem uma forte carga tributária incidindo sobre o lucro apurado por sociedades, alcançando a casa dos 34% (trinta e quatro por cento) em geral.

Foi a partir de 1º de janeiro de 1996 que o Brasil fez a opção pela distribuição de lucros isenta de tributação pelo imposto de renda, objetivando com isso desonerar o capital, incentivar a capitalização das empresas e os investimentos e reduzir as distorções provocadas pelo modelo clássico de tributação, quais sejam: oneração da parcela da renda do capital que apenas repõe a inflação e o incentivo às empresas se financiarem via endividamento, com o abatimento dos juros, como despesa, da base de cálculo do imposto de renda.

Além disso, mirava-se um sistema em que a desoneração dos mais ricos evitaria que qualquer repasse de aumento de tributação fosse feito aos mais pobres. As condições econômico-tributárias favoráveis para novos investimentos e negócios teriam como consequência direta o aumento da arrecadação que permitiria ao Governo o desenvolvimento de política pública distributiva de renda entre a classe menos favorecida.

Avançando-se no tempo, muitos daqueles objetivos não foram alcançados. Ao contrário. Sob a justificativa do aumento da concentração da renda e do uso da tributação como meio de maximizar o bem-estar social, os economistas da equipe do Ministro Paulo Guedes têm apontado para a progressividade tributária em dose superior às atuais e à tributação do capital. E assim chegamos à atual discussão da 2ª fase da reforma tributária, mais especificamente do modelo de tributação da renda e dos lucros.

Não pretendemos produzir um artigo crítico ao atual modelo proposto pelo Governo, discutindo temas que tangenciam a transfiguração da renda do trabalho em renda do capital (“pejotização”), a baixa tributação das altas rendas, a concentração de renda, nem mesmo a alta tributação do consumo e a erosão do cenário político-econômico atual que em nada favorece o retorno da economia, a retomada dos investimentos e com isso a geração de novos postos de trabalho formal (ambiente oposto ao que seria mais favorável à apresentação de um reforma que visa a oneração do capital do investidor).

O objetivo desse texto é discutir o possível contencioso advindo do projeto tal qual apresentado pelo Governo Federal que, ao que nos parece, não dá conta da observância de princípios constitucionais caros às próprias bases do Estado democrático de Direito, tal como o da legalidade, da segurança jurídica e da irretroatividade de lei tributárias que criam ou majoram tributos.

Antes de seguirmos, vale dizer que esse artigo se baseia no substitutivo apresentado pelo Relator da Reforma Tributária, Deputado Celso Sabino, no último dia 13 de julho em almoço na Residência Oficial da Câmara dos Deputados. É sabido que até sua efetiva apresentação e aprovação pelo Congresso, o texto poderá sofrer inúmeras alterações. 

Voltando à tributação de dividendos, especificamente do estoque de dividendos apurados antes de 31.12.2021 (supondo que haja, ainda esse ano, a aprovação da Reforma do Imposto de Renda) e que ainda não foram distribuídos aos sócios e acionistas das pessoas jurídicas, chamamos atenção à redação do artigo 10 da Lei nº 9.249/1995 que prevê que os lucros ou dividendos pagos ou creditados não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário. A isenção dos dividendos distribuídos pressupõe que o lucro da pessoa jurídica já tenha sido tributado pelo imposto de renda no patamar – elevado – de 34%.

No entanto, nos termos do substitutivo do Governo e da Nota Executiva nº 19/2021 emitida pela Receita Federal do Brasil (RFB), é possível concluir que “a proposta analisada prevê a incidência de tributação sobre os dividendos distribuídos a partir de 01 de janeiro de 2022, independente do período no qual os resultados que deram origem a essa distribuição foram apurados (destacamos).

Simplificando: as autoridades fiscais pretendem exigir o imposto de renda à alíquota de 20% sobre os dividendos apurados e não distribuídos e que estejam em quaisquer fundos de reservas ou que sejam reinvestidos na própria sociedade, independentemente do período dos resultados que lhes tenham dado origem.

E, pasmem (!), nesse cenário a RFB entende respeitado o princípio da segurança jurídica, haja vista que o substitutivo e, depois, os esclarecimentos fazendários prestados via Nota Técnica seriam suficientes para dar previsibilidade ao contribuinte do aumento da carga tributária à qual poderão se sujeitar futuramente, incentivando-os, assim, ainda em 2021, a distribuir dividendos provenientes de lucros apurados antes de 2022, de forma a reduzir sua carga tributária.  ainda que, para tanto, tenha que se valer de seus recursos disponíveis em caixa ou de sua capacidade de se financiar com terceiros, o que, a seu ver, não seria uma dificuldade para as grandes empresas, que são as maiores pagadoras de dividendos, que não apresentam restrições significativas de crédito.

É, para dizer o mínimo, imoral a manifestação da Receita Federal do Brasil! Um longo e temerário contencioso tributário se aproxima.

Ao realizar um investimento, o investidor calcula o custo de seu capital, a fim de estimar sua possível lucratividade e a remuneração da fonte de financiamento. Nessa equação, por óbvio, está inserida a tributação do lucro apurado pela pessoa jurídica, bem como dos dividendos recebidos pelo investidor em retorno do emprego de seu capital.

Por ocasião da análise feita e da tomada de decisão de investir no Brasil, os investidores têm legítima confiança nos atos estatais e, por consequência, na inexecução de atos estatais contraditórios, o que deriva diretamente dos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Caso a segurança jurídica reste frustrada, impondo-se ao contribuinte gravame patrimonial e contornos confiscatórios aos atos estatais, ter-se-á, dentre as diversas consequências que se pode antever, não apenas a fuga de capital e de investimento no país, sob uma perspectiva mais ampla, como também, uma busca em massa pela atuação do Judiciário como forma de fazer valer direitos que já estavam garantidos aos contribuintes.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou acerca do necessário resguardo da segurança jurídica por ocasião da análise da utilização do imposto de renda com função extrafiscal. Na ocasião, a Lei 7.988/89 havia majorado a alíquota do imposto de renda incidente sobre o lucro proveniente de operações de exportação incentivadas ocorridas no passado (no ano-calendário anterior – 1988) no mesmo ano-base de edição da Lei (1989):

“(…)2.  O fato gerado se consolida no momento em que ocorre cada operação de exportação incentivada pela redução da alíquota do imposto de renda, à luz da extrafiscalidade da tributação na espécie. 3. É inconstitucional a aplicação retroativa do art. 1º, I, da Lei 7.988/89, que majorou a alíquota incidente sobre o lucro proveniente de operações incentivadas ocorridas no passado, ainda que nos mesmo ano-base. 4. Recurso extraordinário a que se dá provimento, reafirmando a jurisprudência desta Corte, em sede de repercussão geral, para reformar o acórdão recorrido e declarar a inconstitucionalidade, incidental e com os efeitos da repercussão geral, do art. 1º, I, da Lei 7.988/89, uma vez que a majoração de alíquota de 6% para 18% a qual se reflete na base de cálculo do Imposto de Renda pessoa jurídica incidente sobre o lucro das operações incentivadas no ano-base de 1989 ofende os princípios da irretroatividade e da segurança jurídica.” (STF, RE 592.396, Relator Ministro Edson Fachin. Destacamos.)

Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é expresso sobre a necessária informação prévia ao contribuinte da tributação de seu patrimônio, posto que dele será tolhido e, certamente, isso exige certo grau de planejamento:

“A legalidade no campo tributário é pró contribuinte, porquanto a invasão de sua propriedade, mediante estratégia estatal de exação, exige normatização prévia, obstando, a fortiori, a surpresa fiscal, consectário da segurança jurídica garantida constitucionalmente.” (STJ, Tema Repetitivo 293, Relator Ministro Luiz Fux.)

Vale destacar que a reforma da tributação de dividendos vem acompanhada de um racional ligado de forma estreita à redução da tributação do lucro no nível da pessoa jurídica. Nos termos da proposta governamental, enquanto a tributação dos lucros da pessoa jurídica será reduzida em 12,5 pontos percentuais (mantendo-se, além dos 2,5%, os 10% cobrados quando a empresa lucra mais de 20 mil reais mensais e os 9% da contribuição social sobre o lucro líquido – CSLL), os dividendos passarão a ser tributados, no nível do beneficiário, a 20%.

Aceitar, portanto, a tributação de dividendos não distribuídos, mas que já foram tributados, por ocasião da apuração de lucros pela pessoa jurídica à 34%, além de autorizar uma carga tributária de mais de 50% e ferir os princípios da legalidade e da segurança jurídica, como já se demonstrou, afronta também o princípio da igualdade no âmbito tributário, o qual pressupõe que somente os contribuintes que se encontrem em situação equivalente, deverão receber o mesmo tratamento tributário.

Não há isonomia no tratamento dado a investidores que terão, ambos, seus dividendos tributados a 20%, mas em cuja etapa anterior – ainda que indiretamente, visto que a tributação do lucro acontece no nível da pessoa jurídica – um tenha sido onerado a 12,5% e o outro a 34%. Não é preciso grande conhecimento matemático para notar a discrepância entre o tratamento recebido por um e por outro. Tamanha desigualdade não há de prevalecer à análise da Suprema Corte:

“(…) 1. O princípio da isonomia, refletido no sistema constitucional tributário (art. 5º c/c art. 150, II, CRFB/88) não se resume ao tratamento igualitário em toda e qualquer situação jurídica, mas, também, na implementação de medidas com o escopo de minorar os fatores discriminatórios existentes, impondo, por vezes, tratamento desigual em circunstâncias específicas e que militam em prol da igualdade. 2. A isonomia sob o ângulo da desigualação reclama correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida que justifique os interesses protegidos na Constituição (adequada correlação valorativa). 3. A norma revela-se antijurídica, ante as discriminações injustificadas no seu conteúdo intrínseco, encerrando distinções não balizadas por critérios objetivos e racionais adequados (fundamento lógico) ao fim visado pela diferenciação.” (STF, RE 640.905, Relator Ministro Luiz Fux. Destacamos.)

Outro ponto importante a ser trazido para o debate são as mazelas decorrentes da tributação da pessoa jurídica pelo regime de caixa, que impõe a incidência do imposto de renda quando da disponibilização econômica dos dividendos ao indivíduo.

Sob essa ótica, a pessoa física que tenha investido o seu capital em sociedade que tenha auferido lucro e imediatamente distribuído dividendos, anteriormente a 01 de janeiro de 2022, receberá tal remuneração de seu capital isenta de imposto de renda. Já aquele que tenha investido em pessoa jurídica também lucrativa, mas que, por qualquer razão, não tenha distribuído os dividendos até a data limite de 31 de dezembro de 2021, ficará sujeito à tributação pelo imposto de renda à alíquota de 20%.

Vejam que disponibilidade jurídica havia em ambos os cenários, porém, naquela segunda hipótese, os dividendos somente compõem a base de cálculo do imposto de renda da pessoa física por ocasião de seu efetivo pagamento, ou seja, de sua disponibilidade econômica.

Não há equidade no tratamento de um e de outro contribuintes, além dessa disparidade ter como única consequência o enriquecimento sem causa do Estado. Aquele contribuinte do cenário 2 é duplamente penalizado: primeiro por não ter recebido dividendos na época própria, ou seja, tão logo apurado lucro pela pessoa jurídica, e, depois, pelo Fisco, que tributará os rendimentos de seu capital por alíquota (final) maior.

A aplicação do regime de caixa nessa situação específica viola o art. 150, II, da Constituição Federal na medida em que institui tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, apenas e tão somente por receberem extemporaneamente o que já se sabe lhes ser devido.

Direto ao ponto: Como solução impõem-se a discussão e a edição de normas de transição que tragam proteção aos investimentos realizados no passado e ao estoque de lucro já apurado e ainda não distribuído. Caso essas normas de transição não sejam editadas, não há dúvidas do caminho que se apresentará aos contribuintes penalizados: a inauguração de um novo contencioso tributário com base na ofensa de princípios constitucionais da legalidade, anterioridade, segurança jurídica e equidade, a fim de ter garantido o seu direito ao mesmo tratamento aplicado aos contribuintes em igual situação, ou seja, àqueles que tenham capital investido em sociedade lucrativa, mas que, ao contrário dos litigantes, tiveram seus dividendos distribuídos antes de 01 de janeiro de 2022, isentos do imposto de renda.

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