Direto ao ponto: Criticada por supostamente ser tímida e aumentar a carga tributária, a primeira etapa da proposta de reforma tributária do Governo Federal traz diversos avanços em relação ao regime atual. Certamente, setores e contribuintes diferentes sentirão pesos variados, mas o efetivo impacto nos seus preços não é diretamente proporcional à nova alíquota e merece reflexão. De concreto: a loucura do PIS/COFINS daria lugar à nova CBS, que pretende reduzir a insegurança, litigiosidade e opacidade do sistema atual. Eis que, entre outros avanços, (1) permite o desconto de tributos (ICMS, ISS e a própria CBS) da receita utilizada como base de cálculo (que também deixa de contemplar receitas financeiras); (2) universaliza um regime não-cumulativo pleno, com apropriação ampla de créditos; e (3) elimina a complexidade de dezenas de tratamentos diferenciados, mas preserva o regime SIMPLES e a imunidade de exportações. As críticas quanto ao fatiamento da reforma perdem força à medida em que se compreende a estratégia e dinâmica de Brasília. Já o pessimismo das estimativas quanto ao aumento de carga parece algo inflamado pela tradicional desconfiança para com o fisco combinado com certa dose de incompreensão do regime proposto. Vide nosso quadro comparativo traz as diferenças entre a CBS proposta e o regime atual (PIS/COFINS).
Dividir para conquistar: a estratégia do governo na reforma tributária
“Reforma tributária” é um assunto necessário há décadas, mas nunca se esteve tão próximo de sua efetivação. No Congresso, existem duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs 45 e 110), uma delas praticamente pronta para ser levada a Plenário, com profundas alterações no sistema atual, especialmente na tributação do consumo. Na essência, ambas propõem a unificação de diversos tributos federais, estaduais e municipais em um único IVA – Imposto sobre Valor Agregado.
Após a aprovação da reforma da previdência, essas PECs ganharam os holofotes, mas o Congresso repetidamente cobrava do governo federal a sua própria proposta para avançar no debate, ainda que PECs não dependam de sanção presidencial.
Após meses prometendo sua versão de reforma, o governo federal apresentou “apenas” um tema há muito já previsto: a unificação das contribuições PIS e COFINS, prometendo tratar de outros tributos adiante. Embora se reconheça a necessidade de corrigir a complexidade da legislação pertinente a tais tributos, o fatiamento da proposta do governo federal foi por muitos considerada indevidamente singela e incompleta.
De fato, tratando-se o PIS e a COFINS de contribuições sociais de competência federal, em tese tal intento poderia ter sido efetivado inclusive via Medida Provisória, respeitada a anterioridade de 90 dias. Assim, para os críticos, chamar tal unificação e modernização de reforma tributária seria um exagero.
Contudo, analistas políticos e especialistas na dinâmica dos corredores de Brasília vêm uma estratégia bem pensada por trás da atitude do governo: iniciar uma reforma tão complexa com uma proposta mais óbvia e com menos partes móveis dá ao Congresso a chance de testar o conceito de IVA e oportunamente acoplar (termo usado pelo próprio governo) a ele a ideia quase que utópica das PECs. Calibrar a temperatura perante Estados e Municípios e conceder a autoria da reforma à presidência das casas são outras supostas funcionalidades permitidas pela estratégia, na visão de tais analistas.
A nosso ver, reduzir complexidades (extinção de diversos regimes coexistentes) e insegurança (disputas judiciais sobre a exclusão de tributos da base das contribuições e sobre créditos aceitáveis na não-cumulatividade), sem mexer na imensa massa de pequenos contribuintes do SIMPLES é um protótipo aceitável de reforma, a ser depois seguido pelos temas mais difíceis (unificação de um IVA nacional, tributação de dividendos, desoneração de folha, tributação de movimentação financeira). Afinal, tudo passará pelo Congresso, que já está preparado para discutir o PL do governo em conjunto com as PECs.
No xadrez político, o fatiamento da proposta de reforma tributária não é um movimento amador. Há inclusive quem suspeite que a proposta do governo tenha colocado seus “bodes na sala” (a fixação da alíquota nominal uniforme em 12% é a preferida a ganhar tal alcunha), para aumentar a pressão por uma reforma mais abrangente oportunamente (desoneração de folha, por exemplo).
Aumento de carga? Alíquota efetiva, creditamento irrestrito e repasse a clientes PJ
O projeto de lei vai passar pelo corredor polonês da Câmara e do Senado, esperando-se muita pressão para a conciliação de diversos interesses, como de costume. Ainda que haja inegáveis avanços, é provável que os diversos setores que contavam com tratamentos diferenciados venham apresentar seus pleitos. E nenhuma crítica foi tão barulhenta até agora como a do setor de serviços.
Algumas vezes fundados em estudos econômicos (cuja efetiva aderência às premissas da reforma recém saída do forno é duvidosa), mas em grande parte focados na alíquota nominal de 12%, os críticos bem recordam que a tributação do valor agregado parece nociva a quem tem um ciclo comercial curto, emprega muita mão-de-obra direta e que, portanto, tem menos créditos na não cumulatividade. Fato.
A resposta do governo é simples, mas não é fácil: a nova CBS busca neutralidade.
Desde o Governo Temer, no mínimo, a Receita informa ter estudos prontos para a unificação de contribuições PIS/COFINS, inclusive com estimativas da alíquota necessária para manter a arrecadação atual. Ora, se a arrecadação não vai ser alterada, mas o sistema é amplamente reformado, alguém vai pagar mais, alguém vai pagar menos.
Mas o governo não mostra tais cálculos, nem assume que o setor de serviços é o mais afetado. Para cada argumento, há uma resposta.
Castigar o setor que gera 70% do PIB e é o maior empregador? Aumento de 3,65% para 12% para os optantes do regime de lucro presumido/cumulatividade e de 9,25% para 12% para os sujeitos ao lucro real/não-cumulatividade?
As críticas têm sido diretamente rebatidas: não se trataria de simplesmente comparar 3,65% ou 9,25% contra 12%. Se o contribuinte levasse em conta o que sobra em seu bolso, o efeito não seria nocivo como alegado, pois:
- a imensa maioria dos negócios permanece protegida, pois o SIMPLES é preservado, sem impacto na carga atual;
- a base da IBS é inferior à base de PIS/COFINS, pois não contempla receitas financeiras e exclui ICMS, ISS e a própria contribuição da receita;
- os contribuintes terão crédito de 12% sobre todas as entradas de bens e serviços (migração para uma cumulatividade de “imposto contra imposto”), valendo o que constar da nota fiscal do fornecedor; e
- os clientes pessoa jurídica poderão contar com crédito nas suas aquisições, de modo que qualquer aumento de preço seria neutro para os negócios.
Ainda que em toda a comunicação que acompanhou a entrega do projeto de lei ao Congresso o governo federal tenha se esforçado em demonstrar a suposta neutralidade da CBS, que a seu ver é um tributo que também prima pela transparência, a conta não fechou na cabeça da maioria dos fornecedores de serviços.
Ao comparar o antes e o depois, há uma diferença conceitual importante em se partir do preço atual de um serviço (receita bruta, com ISS e PIS/COFINS por dentro) ou do preço já líquido dos tributos (receita líquida, sem ISS e CBS). Parte dos críticos não endereça essa alternativa. Mas é também equivocado assumir que o fornecedor sempre conseguirá repassar a seu cliente aumentos de preço com base no argumento do crédito de IBS que acompanhará a nota.
Esse debate será muito explorado a partir de agora. A verdade é que, mesmo fugindo de aumentar a arrecadação, não há como promover uma reforma que efetivamente altere o regime atual em prol da simplificação sem alterar a carga de componentes diferentes do mercado. Haverá sempre alguém ganhando e alguém perdendo. Nesse quesito, a proposta tem o mérito de expor o debate sobre a quem, como país, daremos eventual prioridade.
Quadro-resumo: CBS versus regime atual (PIS/COFINS) – Regime Geral
PIS/COFINS | CBS | |
Base de cálculo | Receita total, incluindo tributos sobre venda (ICMS e ISS) e as próprias contribuições | Receita líquida (exclui ICMS, ISS e CBS) |
Receitas financeiras | Tributadas a 4,65% (exceto na cumulatividade) | Não tributadas (as que não se relacionem com vendas de bens e serviços, como dividendos e aplicações) |
Alíquota total | 3,65% (cumulativo) ou 9,25% (não cumulativo) | 12%, não cumulativo |
Não cumulatividade | Créditos restritos | Créditos sem restrição |
Demonstração de créditos | Apurados conforme valor de compras de bens e serviços específicos (base contra base) | Destaque em NF de qualquer bem e serviço (imposto contra imposto) |
Importações | Tributadas a 9,25% (gerando crédito na não cumulatividade) | Tributadas a 12% (gerando crédito) |
Exportações | Não tributadas (com manutenção de créditos) | Idem |
Créditos acumulados | Podem ser usados em meses futuros, via compensação, apenas com PIS/COFINS (exceto se decorrerem de exportação) | Podem ser usados para compensar CBS (inclusive os oriundos de PIS/COFINS), ou para compensar outros tributos ou serem ressarcidos trimestralmente, mas no máximo em cinco anos (questionável judicialmente) |
Regimes diferenciados | Dezenas de regimes, incluindo instituições financeiras, monofásico, SIMPLES, Zona Franca de Manaus | Mantidos apenas para SIMPLES, ZFM, cooperativas, combustíveis, entidades financeiras, transporte coletivo, imóveis, agrícola |
Outros itens relevantes e polêmicos | Tributação de licenciamento de software; Extensão de regimes aduaneiros à CBS; Estorno de créditos se saída é não tributada; Responsabilidade de plataformas digitais pelo recolhimento; |
Direto ao ponto: Criticada por supostamente ser tímida e aumentar a carga tributária, a primeira etapa da proposta de reforma tributária do Governo Federal traz avanços em relação ao regime atual. Ela reduz as três maiores fontes de insegurança do sistema atual (complexidade decorrente de dezenas de regimes diferentes; disputas quanto a despesas passíveis de gerar créditos e discussão quanto à exclusão de tributos da base), preservando o regime SIMPLES para pequenos contribuintes (grande massa de empreendedores) e a imunidade de exportações. Certamente, haverá pressão de setores afetados para se ajustar a alíquota, mas esse tema sempre estará sendo avaliado, especialmente se a estratégia de discutir a CBS em conjunto com a proposta de IVA nacional prosperar. As críticas quanto ao aumento de carga acabam sendo inflacionadas por uma incoerência no método de comparação de alíquotas (usando-se a nominal, em vez de a efetiva – considerando a nova base, o desconto de créditos e a geração de novo benefício ao adquirente). O Governo ajudaria trazendo os cálculos que fundamentam a alegada neutralidade da proposta, mas a verdade é que não é possível promover a simplificação almejada, mantendo-se a arrecadação global, sem desagradar a alguns setores.