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A Transferência Interestadual de Mercadorias Entre Estabelecimentos do Mesmo Contribuinte: e os créditos?

Direto ao Ponto: o julgamento dos Embargos de Declaração pendentes na ADC 49 pode não modular a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que impunham a incidência do ICMS nas transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte. O que não se percebeu é que, independentemente dessa modulação, emerge questão atinente a manutenção ou transferência dos créditos. Há uma lacuna legislativa sobre o tema e existem duas hipóteses que despontam no horizonte nada atraente aos contribuintes: (i) a impossibilidade de transferência e a manutenção de saldo credor em estabelecimento sem operação suficiente para escoá-lo gerando ônus fiscal desarrazoado e contrário à própria sistemática não-cumulativa do ICMS; ou (ii) a normatização pelos próprios Estados da manutenção ou transferência dos créditos, impondo-se um sistema esquizofrênico em que Estados diferentes implantariam procedimentos singulares, desarmônicos, culminando com tratamentos díspares e anti-isonômicos aos contribuintes em igualdade de condições fáticas e jurídicas.

O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Declaratória de constitucionalidade nº 49, definiu ser inconstitucional os artigos 11, 12, inciso I, no trecho que dispõe “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir).

Os dispositivos declarados inconstitucionais, em resumo, determinavam a incidência do ICMS na saída interestadual de mercadoria entre estabelecimentos de um mesmo titular, o que era feito sob a justificativa da autonomia dos estabelecimentos.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal a incidência do ICMS pressupõe, necessariamente, a circulação de mercadoria, mas não qualquer circulação e sim aquela oriunda da existência de um negócio jurídico oneroso que envolva a transferência da titularidade de uma mercadoria de um alienante a um adquirente, tudo nos termos da regra-matriz de incidência desse imposto estadual, constante do art. 155, inciso II, da Constituição Federal. Não é o que observa nas transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte, operação de mero deslocamento de produtos, fato jurídico irrelevante para fins de incidência do ICMS.

Consta expresso do acórdão a inexistência de fato gerador na hipótese de deslocamento físico de bens entre estabelecimentos de um mesmo titular e daí a não incidência do ICMS.

Dúvidas surgiram quanto à possibilidade ou não de manutenção dos créditos de ICMS, haja vista a redação do art. 155, §2º, inc. II, “a” e “b”, da Constituição Federal, que determinam que operações isentas de ICMS ou sobre as quais não incidam o imposto, não implicam em crédito ou impõe a sua anulação.

Tendo-se criado mais dúvidas do que respostas a partir daquele julgamento, foram opostos Embargos de Declaração pelo Estado do Rio Grande do Norte, pleiteando a adstrição da declaração de inconstitucionalidade da autonomia dos estabelecimentos ao contorno fático debatido na referida ADC, bem como a modulação dos efeitos da decisão, a fim de que possua eficácia prospectiva, ou seja, para a declaração da inconstitucionalidade da norma atinja apenas período futuro, a partir do julgamento da Suprema Corte, em razão justamente da insegurança jurídica decorrente da revisão de operações de transferência realizadas nos últimos cinco anos, seja para o Fisco, que poderia se ver obrigado ao ressarcimento de uma vultuosa quantia de ICMS recolhido indevidamente pelos contribuintes, seja para contribuintes que poderia se ver obrigados ao estorno de créditos que decorreram dessas transferências interestaduais.

Os embargos de declaração aguardam a finalização de seu julgamento em sessão virtual do Plenário do Supremo Tribunal Federal, o que já poderá ter ocorrido por ocasião da leitura desse artigo por nossos clientes e leitores, visto que está agendado para o próximo dia 29 de abril.

Atualmente não há maioria formada em torno de uma única tese acerca da modulação. Existem três delas e os Ministros estão autorizados a alterem seus votos para se vincularem a qualquer uma. Caso, porém, não ocorra esse movimento e a maioria não seja alcançada, não haverá modulação da declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos legais mencionados no início desse artigo que passarão a ser entendidos como mortos dede o seu nascimento, podendo Fisco e Contribuinte valer-se de tal declaração para requererem o que entenderem como devido relativamente às operações havidas nos últimos cinco anos.

Estarão em risco as operações praticadas e as estruturas negociais concebidas pelos contribuintes. Há o risco de revisão de incontáveis operações de transferência realizadas e da glosa de créditos de ICMS, além da imposição de entraves às futuras transferências interestaduais entre estabelecimentos da mesma empresa.

Do ponto de vista do contribuinte, o grande tema que emerge da declaração de inconstitucionalidade pelo STF é, portanto, relativo a essa suposta possibilidade de o Fisco exigir o estorno dos créditos tomadas nas operações de transferência de mercadorias entre os seus estabelecimentos, afinal o art. 155, §2º, inciso II, da Constituição Federal, determina esse cancelamento nas hipóteses de isenção ou não incidência do ICMS.

Não era tema do julgamento pelo STF o creditamento em questão e, por isso, os Ministros deixaram de se pronunciar a respeito. Não o fizeram por desídia. Como dito, o tema não era objeto da ADI. Inobstante, o Ministro Relator fez questão de consignar em seu voto que “a decisão proferida não afasta o direito ao crédito da operação anterior (…) em respeito ao princípio da não-cumulatividade, restam mantidos os créditos da operação anterior”.

Todavia, logo, muitos Estados passaram a negar a manutenção dos créditos de ICMS quando da transferência de mercadorias para fora da unidade federada. Por sua vez, o Estado de destino, caso o contribuinte, para ter possibilitada a transferência de seus créditos, tenha optado pela incidência do imposto estadual, passou a glosá-los, sob a alegação de não incidência nas operações interestaduais, nos termos da decisão do STF.

Pragmaticamente, o que há hoje é um cenário nebuloso e de extrema insegurança jurídica, com lacunas legais e margem de dúvidas quanto aos efeitos da decisão, cenário esse que dificilmente será pacificado pelo julgamento dos Embargos de Declaração pendentes.

Independentemente do resultado dos Embargos, deveremos assistir a uma nova corrida dos contribuintes ao Judiciário para a garantia de seu direito à manutenção dos créditos de ICMS por ocasião da realização das transferências interestaduais de mercadorias, o que, vejam, não necessariamente garantirá igual carga tributária sobre suas operações. Na prática, a impossibilidade de transferência desses créditos juntamente com as mercadorias fará com que o estabelecimento remetente adquira saldo credor de ICMS, o qual poderá ou não ser consumido em suas operações internas e imporá ao estabelecimento de destino constante saldo devedor de ICMS.

Esse ônus fiscal e financeiro atenta contra à própria sistemática não-cumulativa sobre a qual foi concebido o ICMS pelo legislador constituinte, investindo contra a capacidade contributiva das empresas, reintroduzindo a insegurança jurídica na relação entre contribuinte e fisco estadual.

Todavia, dentro da lógica de que é melhor a manutenção dos créditos em um dos estabelecimentos do contribuinte do que crédito algum, é possível que se faça tal defesa dentro da própria lógica trazida pelo STF, de acordo com a qual a transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte é fato que não interessa ao ICMS, de acordo com a regra matriz do imposto, razão pela qual sequer haveria se falar em não incidência desse imposto.

As hipóteses de não incidência apenas são identificadas nas operações de circulação mercantil de mercadorias dentro de sua cadeia econômica própria, o que, certamente, não abrange uma saída física de um bem que ainda não é elegível à mercancia e, portanto, à incidência do imposto estadual. Não havendo que se falar em não incidência, não há que falar em estorno de créditos. 

Também milita em favor dos contribuintes a redação do artigo 21, §3º, da Lei Complementar nº 87/96, que assegura que a isenção ou não tributação na etapa anterior da cadeia não inviabiliza a utilização do crédito de ICMS em operações posteriores com a mesma mercadoria e sujeitas ao imposto. Admitida a manutenção dos créditos nas simples remessas, nasce o questionamento adjacente quanto à subsistência também em remessas interestaduais em transferência, a qual carecia de previsão expressa em lei complementar, conforme exigido pela Constituição Federal.

Há indícios em uma das três vertentes da modulação do resultado do julgamento da ADI 49, conforme votos já proferidos quanto aos Embargos de Declaração pendentes, de que o STF possa usurpar competência do Legislativo, como vem sendo prática reiterada, determinando, mesmo na ausência de previsão em lei complementar, a normatização pelos próprios Estados dessas dessa manutenção ou transferência de créditos, o que, de certo, implantaria um sistema esquizofrênico em que Estados diferentes implantariam procedimentos singulares, desarmônicos, culminando com tratamentos díspares e anti-isonômicos aos contribuintes em igualdade de condições fáticas e jurídicas.

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