Publicado originalmente em novembro/2016, por Matheus Bueno de Oliveira e José Mario David
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro considerou ilegal benefício fiscal relativo ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (“ICMS”), tendo a maioria dos desembargadores condenado tanto o ex-governador do Estado, chefe do Executivo à época da concessão, como a empresa multinacional que gozou do incentivo a ressarcirem ao Erário o imposto que deixara de ser pago. Estima-se que a renúncia fiscal total possa ter alcançado R$ 1 bilhão.
Embora incentivos fiscais concedidos sem aval das demais unidades federativas sejam comuns, no que se convencionou chamar de “Guerra Fiscal”, e a decretação de sua irregularidade seja também tema frequente no Judiciário, esta é a primeira vez que uma decisão responsabiliza pessoalmente o administrador público e a parte interessada. O tamanho da condenação e o fato desta vir da instância máxima da Justiça Estadual fluminense expõem a severidade do caso.
O benefício, concedido pelo Decreto nº 42.683/2010, consistia no adiamento, por prazo indeterminado, do recolhimento do ICMS devido na aquisição de maquinário para ampliação de parque fabril em território fluminense. Como em muitos outros casos por todo o Brasil, o regime especial fora concedido sem a devida autorização pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (“CONFAZ”), órgão composto pelos Secretários da Fazenda de todos os Estados e do Distrito Federal e presidido pelo Ministro da Fazenda.
O incentivo foi questionado via Ação Popular, tendo a decisão concluído pela ilegalidade não apenas face aos conhecidos argumentos de (i)ausência de aprovação pelo CONFAZ e (ii) indevido fomento da “guerra fiscal” entre as unidades federativas, mas em especial por entender o Tribunal ter havido (iii) irregular promoção de concorrência desleal e (iv)imotivada renúncia de arrecadação.
Muito embora seja por ora um entendimento isolado, e ainda questionável, a condenação da multinacional soa como alerta ao meio empresarial, vez que inaugura perigoso precedente sobre o tema, muitíssimo comum em praticamente todos os Estados e no Distrito Federal. Ademais, como atualmente a situação financeira de diversos entes federados é periclitante, há justo receio de que este caminho seja percebido como fonte extraordinária de receitas.
Até hoje houve um obstáculo prático a essa tese, pois os governadores e prefeitos que concediam os incentivos fiscais não tinham a disposição política de eles mesmos iniciarem a recuperação dos valores que vieram a ser considerados ilicitamente renegados pelo Judiciário. Mas a atuação do Ministério Público e mesmo a possibilidade de ações populares iniciarem a disputa contornam esse obstáculo.
Juridicamente, ainda espera-se o veredicto dos tribunais superiores, que terão de colocar na balança, além da Lei de Responsabilidade Fiscal, do federalismo e do princípio da legalidade, a segurança jurídica e o direito adquirido, especialmente tomando-se em conta que boa parte dessas benesses tributárias, ainda que conferidas à revelia do CONFAZ, ou padecendo de vícios formais, normalmente foram concedidas sob condições onerosas, como o investimento no território nacional e a geração de empregos, e invariavelmente por autoridade competente para tanto, induzindo a conduta da iniciativa privada.
Politicamente, a solução poderia vir por meio de uma prometida reforma tributária, o que por vezes se considerou fazer com uma espécie de cláusula de transição, permitindo a perpetuidade dos incentivos gozados até determinada data. Contudo, por envolver matéria de emenda à Constituição, nunca houve consenso e força política suficientes para trilhar esse caminho (e mesmo que um dia venhamos a ter, a própria emenda constitucional estaria sujeita ao escrutínio do Supremo Tribunal Federal – “STF”, como a própria corte já entendeu ser possível ocorrer).
Na prática, existem casos e casos. Embora o contexto econômico e mesmo o cenário global indiquem novos desafios, como a discussão do que seria a “parcela justa” de imposto a pagar, possivelmente o risco a que uma empresa beneficiada estará exposto não poderia ser aferido por fórmula única. A preservação da segurança jurídica e do pacto entre administrado e administração podem ser argumentos sempre presentes, mas esperamos que o Judiciário venha a levar em consideração outros fatores atenuantes ou agravantes, como o retorno financeiro e social dos benefícios concedidos, o grau de comprometimento do beneficiado , o prazo de fruição, a abertura de novos mercados regionais, entre outros tantos. Há incentivos fiscais concedidos com diferentes níveis de contrapartida por parte da iniciativa privada e apelo social maior ou menor. Embora ainda haja muito o que ser avaliado pelo Judiciárioi, a conduta presente que talvez possamos recomendar como relevante, além da própria identificação dos eventuais benefícios gozados pela empresa, é a quantificação das contrapartidas proporcionadas à comunidade em que inserida, para que em eventual demanda sejam elas usadas como reforço factual à tese do pacta sunt servada, de modo que risco máximo deixe de ser o de ressarcimento dos tributos já economizados, limitando-se a mera cassação do incentivo para eventos futuros.