Direto ao ponto: um tema ainda controverso é o tratamento tributário que envolve a doação e a sucessão de aplicações financeiras, especialmente no que diz respeito a cotas de fundos de investimento fechado. De um lado, o fisco existe imposto de renda sobre rendimentos acumulados no patrimônio dos fundos quando da transferência de titularidade desses ativos, tratando tais eventos como equivalentes a uma alienação, contando com certo temor e aderência pelos administradores dos fundos. Contudo, os contribuintes possuem bons fundamentos para garantir a transferência das cotas sem que os herdeiros ou donatários sejam onerados pelo tributo federal.
A transferência de aplicações financeiras por meio da doação em antecipação de legítima (quando o proprietário decide em vida distribuir seu patrimônio total ou parcialmente aos herdeiros) ou do processo de sucessão (herança por morte propriamente) é por vezes objeto de controvérsias entre fisco e contribuintes, especialmente no que se refere à tributação pelo imposto de renda dos ganhos acumulados por fundos fechados.
Em relação ao ITCMD, tributo estadual que por natureza onera tais eventos, as controvérsias normalmente se referem a avaliação dos bens transferidos, pois a regra é relativamente simples: o imposto é devido quando ocorre uma transferência causa mortis (ou seja, na sucessão ou doação em antecipação de legítima), sendo calculado sobre o valor venal dos ativos, isto é, sobre seu valor de mercado. As secretarias da fazenda estaduais envidam esforços para confirmar se a base declarada pelo contribuinte está condizente com o valor de mercado dos bens, contando para isso com acesso a informações das declarações de IR dos beneficiários (que ali indicam os rendimentos de herança e doação), informações fornecidas por terceiros envolvidos (notadamente cartórios de imóveis, instituições financeiras) e avaliações.
Quanto ao Imposto de Renda, vale inicialmente recordar que, de acordo com o previsto no artigo 35, VII, “c”, do RIR/18 (mesma redação do artigo 6º, XVI, da Lei 7713/1988), os valores dos bens adquiridos por doação ou herança são isentos de IR no beneficiário (herdeiro ou donatário). Logo, o beneficiário (herdeiro ou donatário), aquele que efetivamente fica mais rico com o evento é isento.
Por outro lado, o artigo 130 do RIR/18 dispõe que o doador ou o falecido (seu espólio) será tributado se na transferência de propriedade os bens e direitos forem avaliados em montante superior ao que consta de sua declaração de imposto de renda. Ou seja, acaso seja atribuído à transferência valor superior ao de custo, essa diferença ficará sujeita à apuração do ganho de capital e à incidência de IR, sendo então contribuinte a origem, ou seja, o doador ou o espólio.
O artigo 130 do RIR tem base legal no artigo 23 da Lei 9.532, de 1997, que assim dispõe:
Art. 23. Na transferência de direito de propriedade por sucessão, nos casos de herança, legado ou por doação em adiantamento da legítima, os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.
§ 1º Se a transferência for efetuada a valor de mercado, a diferença a maior entre esse e o valor pelo qual constavam da declaração de bens do de cujus ou do doador sujeitar-se-á à incidência de imposto de renda à alíquota de quinze por cento.
§ 2º O imposto a que se referem os §§ 1o e 5o deverá ser pago:
I – pelo inventariante, até a data prevista para entrega da declaração final de espólio, nas transmissões mortis causa, observado o disposto no art. 7o, § 4o da Lei no 9.250, de 26 de dezembro de 1995;
II – pelo doador, até o último dia útil do mês-calendário subsequente ao da doação, no caso de doação em adiantamento da legítima;
III – pelo ex-cônjuge a quem for atribuído o bem ou direito, até o último dia útil do mês subsequente à data da sentença homologatória do formal de partilha, no caso de dissolução da sociedade conjugal ou da unidade familiar.
§ 3º O herdeiro, o legatário ou o donatário deverá incluir os bens ou direitos, na sua declaração de bens correspondente à declaração de rendimentos do ano-calendário da homologação da partilha ou do recebimento da doação, pelo valor pelo qual houver sido efetuada a transferência.
Como se observa, para fins de IR, a lei fiscal atribui verdadeira faculdade aos particulares, de modo que estes estariam livres para elegerem se os herdeiros/donatários registrariam o recebimento dos ativos pelo mesmo valor de custo do falecido/doador, ou se o fariam a valor de mercado, com o consequente imposto sobre o ganho devido por este último.
Tal faculdade não seria contraditória com a necessidade de serem respeitados os quinhões hereditários, de acordo com o Código Civil, e a obrigação de pagamento do ITCMD, ambas essas obrigações atreladas ao efetivo valor de mercado dos ativos sucedidos.
Dessa forma, embora sempre haja ITCMD (pois este imposto independe de haver ganho na transferência, incidindo pela mera transferência causa mortis) e sempre haja isenção de IR no beneficiário, o doador ou falecido poderá estar sujeito a IR (ganho de capital) caso haja uma diferença positiva entre o valor registrado na sua declaração de IR e o valor que for utilizado, para fins fiscais, na transferência aos herdeiros ou donatários.
Em relação a cotas de fundos fechados, embora a legislação não lhes imponha retenção do IR no come cotas, mas apenas nos eventos de resgate, liquidação, amortização ou alienação, a sucessão costuma gerar embates entre fisco e contribuintes, envolvendo inescapavelmente os administradores.
Aqui, vale recordar que os fundos fechados só permitem novos cotistas em novas fases de captação e têm prazo de existência definido. Como a regulamentação fiscal impõe que a tributação fique postergada para o momento do resgate, amortização, liquidação ou alienação, a carteira de aplicações do fundo vai reconhecendo ganhos, mas o IR potencial fica diferido para aqueles eventos. É naqueles momentos que o IR incidirá, sendo retido pelo administrador, eleito pela legislação como responsável pela apuração, retenção e recolhimento em nome do cotista, efetivo contribuinte/beneficiário da renda.
Assim, quando do falecimento de um cotista, os herdeiros deveriam apenas assumir a posição daquele no fundo, que geralmente segue com seu portifólio de investimentos intacto (muitas vezes por exigência do próprio perfil de aplicação). Afinal, em princípio, a mera sucessão do cotista não representa resgate, liquidação, amortização ou alienação das respectivas cotas. Portanto, desde que realizada pelo valor de custo do falecido, não haveria IR nesse instante – incidindo somente o ITCMD.
Contudo, a RFB se posicionou de forma contrária ao editar o Ato Declaratório Interpretativo n. 13/2007. Vejamos:
Art. 1º São passíveis de incidência da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) as transferências financeiras, realizadas pelas instituições financeiras, decorrentes de:
I – incorporação, cisão ou fusão;
II – sucessão “causa mortis”
Parágrafo único. O disposto no inciso I não se aplica na hipótese de transferência de reservas técnicas, fundos e provisões de plano de benefício de caráter previdenciário entre entidades de previdência complementar ou sociedades seguradoras, nos termos do inciso IX do art. 8º da Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996.
Art. 2º As operações de que tratam o art. 1º, quando referentes a aplicações financeiras, sujeitam-se inclusive ao pagamento do imposto de renda na fonte e do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a título ou valores mobiliários, quando for o caso.
Nota-se que, embora se referindo inicialmente à antiga CPMF, o ADI 13 acabou por determinar a incidência também de IR, na modalidade fonte, no caso de sucessão.
Isso significaria que, ainda que a sucessão de cotas de fundos se fizesse a custo, seguindo a permissão legal, e nenhum resgate ocorresse, o espólio (e herdeiros, consequentemente) seriam onerados pelo IR. Embora o dispositivo não esclareça se se trata de IRRF a título de ganho de capital ou não, a instituição responsável estaria obrigada à retenção como se ocorresse um resgate da aplicação.
Em 2014 a Receita Federal editou a Solução de Consulta n. 383 no mesmo sentido:
ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA RETIDO NA FONTE – IRRF
EMENTA: APLICAÇÃO FINANCEIRA DE RENDA FIXA. TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS. INCIDÊNCIA.
Aberta a sucessão hereditária, que transmite, desde logo, a herança aos herdeiros, o atendimento ao formal de partilha impõe o resgate ou liquidação da aplicação financeira de renda fixa em nome do titular da aplicação, sendo vedada a transferência meramente escritural da titularidade aos herdeiros, para fins de incidência do IRRF.
DISPOSITIVOS LEGAIS: Decreto nº 3.000, de 1999, art. 119; Lei nº 8.981, de 1995, art. 65; IN SRF nº 1.022, de 2010, arts. 8º, 9º e 37; ADI RFB nº 13, de 2007.
No caso analisado, a administradora de um fundo de investimento, especialmente de fundos de renda fixa, ficou em dúvida se deveria proceder ou não a retenção de IR na hipótese de transferência das aplicações financeiras quando da mudança de titularidade dos títulos, assim como se deveria ser reiniciada a contagem do prazo para aplicação da tabela regressiva.
Em síntese, o entendimento manifestado pela Receita Federal foi pela incidência do IR na fonte, pois a transferência da titularidade das aplicações financeiras por meio da sucessão caracterizaria uma forma de alienação, nos termos do §2º, do artigo 65, da Lei 8.981/1995.
Adicionalmente, acrescentou que a legislação tributária determina a incidência do IR na fonte “em qualquer situação que ocorra transmissão de propriedade”, fundamentando esse entendimento justamente no ADI nº 13/2007.
Por fim, segundo consta dessa solução de consulta, após a transferência da titularidade da aplicação financeira, reinicia-se o prazo de contagem para fins de aplicação da tabela regressiva do IR na fonte.
Como se observa, o fisco equiparou a sucessão a uma alienação e impôs aos administradores, responsáveis pelo IRRF, a mesma dinâmica que haveria se um resgate pelo falecido e reinvestimento pelos herdeiros estivesse ocorrendo.
A posição da RFB impôs uma conduta conservadora na indústria de fundos, eis que, apesar de se tratarem os fundos de condomínios fechados e a hipótese sucessão não significar resgate antecipado, contrariar a posição fiscal implicaria ao administrador encargos de multa e juros. Por outro lado, tratando-se de alienação, uma doação a valor de custo do doador, ainda que realizada em antecipação de legítima, não representaria ganho de capital deste, de modo que a indústria passou a aceitar essa hipótese.
Isso ficou reforçado no final de 2021, quando a Receita federal editou a solução de consulta 98, pela qual foi analisada a incidência do IRRF na doação de cotas de fundo fechado de ações.
Nesse caso, o consulente, detentor de cotas de um fundo de investimento fechado em ações no exterior, doou em adiantamento de legítima parte das cotas para seus filhos pelo custo de aquisição, conforme declarado em sua declaração de imposto de renda.
Nos termos da consulta, o consulente ressaltou seu entendimento de que seria inaplicável à hipótese de doação o entendimento expressado na Solução de Consulta n. 383/2014, por se tratar de doação, não sucessão, conforme aquele caso.
Adicionalmente, ressaltou que a incidência de IRRF em fundos fechados ocorre somente na hipótese de resgate, a qual não poderia ser confundida com a doação em adiantamento de legítima.
O entendimento da Receita Federal foi de que deveriam ser aplicadas as regras gerais de ganho de capital nas hipóteses de doação em adiantamento de legítima, conforme ementa abaixo:
Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF
DOAÇÃO EM ADIANTAMENTO DE LEGÍTIMA. COTAS DE FUNDO FECHADO DE AÇÕES.
A doação em adiantamento de legítima de cotas de fundo fechado de investimento em ações não resulta em resgate das referidas cotas e deve seguir as regras tributárias do ganho de capital de bens e direitos, quando efetuada para beneficiário pessoa física;
Caso a doação em adiantamento de legítima seja efetuada por valor superior ao valor constante da DIRPF do doador, a diferença positiva entre esses valores configurará ganho, tributado pelo Imposto sobre a Renda à alíquota de 15%, devendo o IR ser retido e recolhido pelo doador, caso seja efetuada pelo valor constante da DIRPF do doador, não haverá IR a pagar, nesse momento.
O donatário deve informar, em sua DIRPF, as cotas de fundo fechado de investimento de ações recebidas pelo valor da transferência.
Dispositivos Legais: Instrução CVM nº 555, de 2014, arts. 3º, 4º, 14; IN RFB nº 1.585, de 2015, arts. 16 a 18; Lei nº 9.532, de 1997, art. 23.
Assim, pela lógica dessa SC, se a doação for feita pelo custo de aquisição, não haveria ganho e não haveria a tributação de IR, nem na modalidade IRRF, nem na modalidade ganho de capital. Ressaltou-se que esse entendimento aplicado à doação de cotas de fundo fechado também deve ser aplicado na hipótese de sucessão “causa mortis”, por conta do disposto no artigo 23 da Lei n. 9.532/1997. Note-se que isso não quer dizer que a base de ITCMD seria a mesma, porque a opção por se fazer uma doação a valor de custo não afastaria a incidência da legislação estadual exigindo o imposto sobre o valor venal.
Mas, quando se trata de sucessão, ainda há embates e uma posição conservadora pelos administradores, o que levou o tema para ser discutido no judiciário, onde o contribuinte questiona a incidência do IR na transferência da titularidade dos ativos financeiros quando feita pelo valor de custo das aplicações.
A discussão gira justamente em torno da aplicação do artigo 2º do ADI 13/2007 em conjunto com a Solução de Consulta n. 383/2014, o que afrontaria o disposto no artigo 23 da Lei 9532/1997, o qual determina que o inventariante, no formal de partilha, pode deliberar sobre a transmissão sucessória a valor de custo de declaração ou de mercado, argumentando que se a transferência for pelo valor constante da última Declaração de Bens e Direitos do de cujus, não haveria ganho de capital.
Nesse contexto, é importante pontuar sobre o alcance do artigo 23 da Lei 9532/1997.
A nosso ver, o dispositivo concede, para fins de IR, a oportunidade de o contribuinte escolher a que valor os bens e direitos serão transferidos, se a mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.
Portanto, optando-se pela utilização do valor de custo, não haveria ganho nem IR devido. Esse, inclusive, foi o dispositivo adotado pela Receita Federal para fundamentar o entendimento exarado na Solução de Consulta n. 98/2021.
Por ora, as manifestações do judiciário são em ambos os sentidos. Há decisões favoráveis aos contribuintes, especialmente com base no entendimento de que uma fonte secundária – ADI 13/2007 – não poderia criar hipótese de incidência diversa daquela prevista em lei. Outro ponto usado para fundamentar a não incidência do IR é o fato de a transferência da titularidade por sucessão, nos termos do §2º, do artigo 65, da Lei 8.981/1995, não pressupor o resgate ou a liquidação das cotas do fundo de investimento. Mas também existem decisões desfavoráveis, pela incidência do IR, justamente por entenderem válida a equiparação da RFB entre sucessão e alienação.
Embora o tema ainda não esteja consolidado, quer nos parecer que os contribuintes possuem fundamentos para alegar a ilegalidade do ADI 13 e, ainda que se admitisse ser a sucessão espécie de alienação, esta premissa nunca invalidaria a faculdade legal de se fazer tal transferência a valor de custo, sendo tal opção uma legítima política tributária, sem afetar os direitos sucessórios dos herdeiros nem a base do ITCMD estadual, devendo prevalecer de qualquer forma a possibilidade de não haver IR na sucessão, acaso utilizado o valor da DIRPF do falecido ou doador para tais fins.
Direto ao ponto: conservadoramente, os administradores de fundos tendem a realizar a retenção do IR no caso de transferência via sucessão da titularidade de cotas de fundos, com base nas manifestações editadas pela RFB, já que são responsáveis por seu recolhimento, independentemente do valor indicado para a sucessão ou doação das cotas (e, portanto, mesmo quando inexistente ganho de capital nessa transferência). Contudo, aqueles contribuintes que transferirem as aplicações financeiras a valor de custo tem bons argumentos para questionarem a incidência do IR, haja vista a opção legal dada para a sucessão de tais ativos, podendo ainda evitar tal litígio procedendo com a doação em vida, a valor de custo, hipótese aceita pela indústria como alheia ao IR.