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Tributação de software: resumo do tema que interessa a todos

Direto ao ponto: Em novembro o STF avaliou se no licenciamento/comercialização de software deve incidir ICMS ou ISS. Considerando que o tema é essencial para a formação de preço nos contratos de licenciamento de uso de programas de computador e mesmo de aplicativos de celular, e que na prática não existe qualquer negócio que atualmente não dependa substancialmente do uso de tais ferramentas, a compreensão do tema interessa a todos, contribuintes e consumidores.

Spoiler alert: o ICMS foi afastado, mas quem o recolheu pode perder direito a se ressarcir se não agir correta e imediatamente

Ainda que o julgamento tenha sido suspenso por pedido de vista do Ministro Kassio Marques em sua primeira participação no Plenário do STF, a principal resposta aguardada pelos contribuintes já foi dada pela maioria dos Ministros da Corte: o ICMS não pode incidir sobre software, ainda que seja do tipo comercializado em larga escala, sem customizações, e independentemente de ser transmitido via meio físico (mídia) ou digital (download).

Dada a demora do STF em julgar o tema (uma das duas ações diretas de inconstitucionalidade – ADIs – analisadas é de 1999, é provável que diversos contribuintes tenham optado por conservadoramente seguir a orientação dos fiscos estaduais e recolhido o ICMS sobre suas vendas, especialmente considerando que o imposto estadual chegou a ter sua alíquota equiparada à do ISS (5%). Isso significa que o julgamento atual representa uma oportunidade de recuperação do imposto pago nos últimos sessenta meses (prazo máximo de recuperação).

Contudo, tal oportunidade pode ser inviabilizada por dois obstáculos: primeiro, a necessidade de atendimento do artigo 166 do Código Tributário Nacional (CTN), que na prática exige que o credor apresente prova de que não repassou o custo do imposto a seus clientes, ou que por estes esteja autorizado para requerer o ressarcimento; segundo, em razão do direito ao indébito vir a ser negado a quem não inicie o pedido imediatamente, pois há tentativa de modulação dos efeitos do julgado (que a despeito de não contar atualmente com o aval de todos os Ministros, pode vir a ser aprovada até a formalização do acórdão).

Em outras palavras: sua empresa licencia/comercializa software e recolheu ICMS? Ainda não debateu o tema? Vale muito a pena avaliar a questão imediatamente.

Detalharemos o veredicto do STF.

Histórico do debate envolvendo a tributação de software por ISS ou ICMS: origem da distinção entre software de prateleira e software customizado

Há mais de vinte anos o STF decidira que a tributação do software dependeria de este ser configurado como espécie de mercadoria (“software de prateleira”, aquele produzido e distribuído em massa, indistintamente de quem for seu adquirente), ou serviço (o software “customizado”, aquele que é confeccionado atendendo a particularidade de seu usuário). Segundo esse histórico julgamento, o software de prateleira deveria ser onerado pelo ICMS estadual, por se aproximar de um negócio envolvendo uma obrigação de dar. O software customizado deveria ter seu fornecimento sujeito ao ISS municipal, pois equivaleria a uma obrigação de fazer.

Pano de fundo para o julgamento de 2020: nova realidade de mercado e jurídica tornaram superados os limites traçados em 1998 pelo STF

Embora importante, o julgamento de 1998 logo se mostrou incompleto. Em primeiro lugar, porque na época a comercialização de software era inescapavelmente concretizada pela entrega de mídias (“bens corpóreos” como disquetes, CD ROMs, pen drives), existindo sempre um suporte físico, o qual muitas vezes tinha seu valor utilizado como base de cálculo para a tributação por ICMS (como ocorria no caso de São Paulo). Essa, aliás, era a origem da controvérsia, tendo o STF dado importância ao componente físico da operação para opinar pela incidência do ICMS (fornecimento de mercadoria tangível). Ocorre que não muito depois a transmissão dos programas de computador via download tornou-se a regra e, portanto, qualquer referência na legislação ao suporte físico virou letra morta. Uma das ADIs agora julgadas, por exemplo, tratava justamente de lei mato-grossense que exigia ICMS sobre transmissões eletrônicas de software. A questão que se colocou: a inexistência de mídia física anula a equiparação do programa a mercadoria?

Em segundo lugar, o julgado se tornou obsoleto porque ignorou que ambas as espécies de software então catalogadas (de prateleira ou customizados) são sempre objeto de um contrato de licenciamento de uso, não sendo este, portanto, útil à distinção. De fato, ainda que se tenha buscado distinguir obrigações de dar e de fazer, a regulamentação do setor de informática no Brasil disciplina que o licenciamento é a regra. A verdade é que a obrigação de fazer mais evidente é a de preparação de um programa por encomenda do cliente, o que envolve não apenas a licença, mas outro contrato pertinente ao intangível, com disciplina sobre propriedade intelectual, acesso ao código fonte etc. Em 2003 sobreveio a Lei Complementar 116 impondo que tanto o licenciamento de uso como contratos de confecção de software e de programação estariam sujeitos exclusivamente ao ISS (itens distintos da lista de serviços anexa à LC).

Por fim, diversas outras situações não existentes em 1998 passaram a fazer parte do dia a dia da comercialização de software, como sua aplicação a dispositivos móveis (talvez hoje inclusive superior ao comércio de computadores pessoais); o modelo de pagamento via acesso temporário, com o acesso condicionado a uma assinatura periódica (pay per use ou software as a service – “SaaS”); as constantes e muitas vezes obrigatórias atualizações realizadas no código fonte; a possibilidade de o próprio usuário habilitar configurações individuais, que embora não diretamente confeccionadas para um cliente em específico aproximam o programa a um customizado; entre outras alternativas e modelos em constante evolução.

Logo, se em 1998 traçou-se um limite aparentemente muito nítido entre os campos de incidência do ICMS e do ISS, com o passar dos anos a própria evolução do mercado e alterações legislativas foram tornando debatível e mesmo infeliz aquela distinção entre software padronizado e software customizado. Tanto que, além das duas ADIs agora analisadas, há pelo menos outras três pertinentes ao tema (lei mais aqui).

Ademais, o STF em outros julgados dificultou ainda mais sua missão no julgamento do tema, eis que a clássica premissa de que o ISS deve onerar apenas obrigações de fazer foi substancialmente relativizada em julgados mais recentes a respeito de seguros de saúde e de leasing (vide nosso artigo sobre isso clicando aqui).

Veredicto da maioria do STF em 2020: ainda que vendidos indistintamente ao público consumidor, um software é no final das contas o resultado de uma complexa prestação de serviços passível apenas de ISS

No início de novembro o STF debruçou-se (pelo Plenário Virtual) sobre as ADIs 1.945/MT (de 1999) e 5.659/MG (de 2017). Embora não todos os casos ligados ao tema tenham sido levados a julgamento, a corte teve a oportunidade de levar em consideração a evolução do mercado e, em especial, as disposições da LC 116 sobre ISS (publicada em 2003).

Isso é deveras importante porque um dado essencial que não existia em 1998 é o fato de uma lei complementar ter elegido os Municípios como únicos competentes para tributar licenças de uso de software. Como antes mencionado, ainda que se adotasse a histórica (e talvez defasada) distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer, a menção da lei à licença de uso não necessariamente resolveria o debate, que traz a reboque uma discussão mais profunda sobre a essência da relação entre o licenciador e o licenciado.

De fato, o voto condutor da maioria, do Relator de uma das ADIs, Ministro Dias Toffoli, deu especial valor à LC 116. Em 42 páginas, o Ministro reconhece a importância da lei complementar como ímpar, eis que a Constituição Federal delegou a esse veículo normativo o papel de regular conflitos de competência entre entes federados, presente no tema (ICMS dos Estados versus ISS dos Municípios). Mais que se ater à literalidade da LC 116, o Ministro aceitou a constitucionalidade desta e fez um paralelo com a matéria de fundo, tendo recordado que, diferentemente de 1998, hoje um software não sobrevive sem ser atualizado, sem que haja a necessidade de constantes aprimoramentos, até por questões de segurança do usuário, o que invariavelmente se dá mediante um esforço humano mais semelhante a uma obrigação de fazer (sujeita ao ISS) do que de dar (sujeita ao ICMS).

De fato, parece ter sido especialmente convincente a percepção de que no mais das vezes a aquisição de um software, ainda que padronizado, decorre de pesados investimentos na preparação e permanente atualização do código fonte que, entre uma obrigação de dar e uma de fazer, estaria mais próximo desta última. O Ministro faz questão de ressalvar que não há na Constituição a premissa de que mercadorias tenham de possuir suporte físico, nem que operações com bens incorpóreos seriam sempre serviços. Mas, tendo por escopo a definição do objeto da causa, isto é, responder se o ICMS pode ser exigido sobre contratos de licenciamento de uso de software, preferiu-se privilegiar a conclusão pautada no papel solucionador de conflitos da lei complementar, tendo-se então afastado o imposto estadual.

Também a suportar a decisão foi recordado que a opção pelo ISS em detrimento do ICMS estaria sintonizada às recomendações do direito comparado em relação a tributação da economia digital, evitando-se a criação de tributo novo ou tratamento discriminatório entre operações eletrônicas e não digitais, além de privilegiar a segurança jurídica ao se manter intacta a previsão da LC 116 depois de 17 anos de sua promulgação.

Formou-se a maioria com a concordância dos Ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Luiz Fux. Desses, apenas um (Min. Marco Aurélio) não acatou a proposta de modulação, coerentemente ponderando que tal seria equivalente a premiar o Estado pela demora do Judiciário, estimulando que se aposte nesta.

Vencidos ficaram os Ministros Luiz Edson Fachin, Cármen Lúcia (relatora da outra ADI) e Gilmar Mendes, que votaram por manter a classificação da clássica decisão de 1998, apenas agregando ao raciocínio de então que o fato de o software ser distribuído eletronicamente, sem suporte físico, não retiraria dele a natureza de mercadoria, sujeitando-se ao ICMS, portanto, ficando o ISS limitado aos casos em que há uma encomenda propriamente dita.

Efeitos práticos

Devemos aguardar a formalização do acórdão para que tenhamos completa dimensão do alcance do julgamento, recordando ainda que as ADIs avaliadas tinham objeto específico (legislações estaduais sobre incidência de ICMS em software tido como mercadoria, na transmissão eletrônica), havendo outras ainda a serem julgadas. Também cabe a ressalva de que o voto vencedor expressamente ponderou que a complexidade do tema possivelmente imporá desafio casuístico para a definição da materialidade dos tributos.

Contudo, a despeito das diversas críticas passiveis de serem levantadas, ao que tudo indica o STF optou por eleger o ISS como o tributo a onerar qualquer licença de uso de software, seja este customizado ou não, e independentemente de como sua transferência se der (física ou eletrônica).

Na prática, considerando o posicionamento do mercado ter sido majoritariamente em favor do ISS, consumidores de software tendem a não sofrer impacto em seus custos, enquanto fornecedores de software que eventualmente tenham se sujeitado ao ICMS devem readequar rotinas e avaliar imediatamente a possibilidade de ressarcimento (vide primeiro item deste artigo), valendo igualmente aos clientes destes o alerta quanto à eventual impossibilidade de se apropriar de créditos do imposto estadual que onerou (indevidamente) a operação de aquisição de softwares (ou seja, estorno de crédito de ICMS pelos adquirentes).

Direto ao ponto: embora ainda não finalizado, o julgamento do STF a respeito da tributação do fornecimento de software pautou-se em especial pela validade da Lei Complementar 116 como solucionadora de conflitos de competência, tendo elegido a incidência do ISS em detrimento do ICMS sobre contratos de licenciamento de uso de software. Considerando que tal regra não dá lugar a juízos de valor sobre a natureza do software como padronizado ou customizado, deixou de ser importante essa clássica distinção, assim como também aquela entre obrigações de dar e de fazer. A princípio há oportunidade de ressarcimento do ICMS recolhido pela supostamente menor parcela do mercado que se filiou aos Estados, com o devido cuidado contra a modulação e efeitos do artigo 166 do CTN, mas ainda há outros casos a serem avaliados pela Corte, que não deixou de reconhecer a complexidade na definição do tributo devido caso a caso.