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O STF E A CRIMINALIZAÇÃO DA MERA INADIMPLÊNCIA FISCAL: UMA POSSÍVEL SOLUÇÃO SALOMÔNICA?

No próximo dia 11 de dezembro o Supremo Tribunal Federal (“STF”) deve analisar causa de enorme repercussão, respondendo à seguinte pergunta: cabe a responsabilização criminal de quem deixa de recolher os impostos confessados e devidos por ele próprio, na condição de contribuinte (não como responsável ou substituto)? Trata-se do recurso ordinário em habeas corpus (RHC) 163.334, de relatoria do Ministro Roberto Barroso.

De um lado, representantes do Ministério Público (de Estados e Federal) e Procuradorias defendem a perseguição criminal de inadimplentes, eis que os danos por estes causados mereceriam severa sanção. De outro, o exagero descabido desse caminho é indicado como ilegal por virtualmente todas as associações de classe representantes de setores da economia, assim como por renomados criminalistas e tributaristas.

Afinal, o que está em jogo e o que esperar do STF? Para melhor compreender a dimensão da catástrofe que pode vir a ocorrer, voltemos à decisão recorrida, do STJ:

DO (DETESTÁVEL) PRECEDENTE DO STJ EM 2018: ATRASAR IMPOSTOS VIROU CRIME

Como amplamente noticiado pela mídia especializada na ocasião, em agosto de 2018 a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) afirmou, para espanto geral da comunidade jurídica, que o mero não recolhimento de ICMS pode ser considerado crime de “apropriação indébita tributária” – previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.

O caso então julgado (Habeas Corpus nº 399.109, que gerou o RHC 163.334 a ser decidido dia 11 pelo STF) combatia decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que afastara sentença de absolvição sumária, condenando um casal de empreendedores pela falta de recolhimento de ICMS em alguns meses, mesmo tendo o tributo constado de declarações fiscais, o que afasta a presença de fraude.

Embora as quantias envolvidas sequer fossem significativas, tendo inclusive a defensoria do Estado de Santa Catarina atuado em favor dos particulares, o caso é dos mais importantes, eis que estaria uniformizando a jurisprudência da Terceira Seção – justamente aquela a quem compete a interpretação das leis na seara criminal no STJ.

Ou seja, embora não haja efeito vinculante, a corte máxima do país em matéria de legalidade estaria sinalizando a todos os demais tribunais seu entendimento sobre a situação, e o fez de forma extremamente prejudicial aos contribuintes afetados.

Até esse julgamento em 2018 havia certa divergência sobre a matéria perante a Quinta e a Sexta turmas do STJ, que compõem sua Terceira Seção, mas o mercado sempre assumia como correta a parcela das decisões que afirmavam que deixar de recolher o próprio ICMS, desde que devidamente declarado o imposto, jamais caracterizaria crime, mas mero inadimplemento fiscal.

Sob essa ótica (agora ameaçada), uma vez tendo sido devidamente declarados os tributos devidos, só poderia ser encarada como criminosa a conduta de deixar de repassar ao governo aquele valor que fora retido de terceiro (como no caso de contribuições previdenciárias descontadas da remuneração de empregados pelo empregador), ou que fora cobrado na condição de responsável tributário por substituição (como o ICMS-ST cobrado antecipadamente pelo fornecedor).

Porém, no julgado em questão a maioria dos ministros daquela Terceira Seção (placar de seis a três) votou pelo prevalecimento da interpretação mais radical, do ministro relator Rogerio Schietti Cruz, segundo a qual o ICMS próprio “cobrado” do cliente (via destaque em nota fiscal) e não repassado ao governo (via recolhimento) configuraria apropriação indébita criminosa, ainda que devidamente confessado como devido, ou seja, mesmo que não haja fraude.

De acordo com o voto do relator, para a configuração do delito de apropriação indébita tributária, como ocorre na apropriação indébita em geral, o fato de o contribuinte registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que o delito não pressuporia a clandestinidade.

E AGORA? COMO O STF PODE RESOLVER O CASO?

PRIMEIRO CENÁRIO: REVERSÃO INTEGRAL DO JULGAMENTO DO STJ, COM VITÓRIA DOS CONTRIBUINTES

A nosso ver, o veredito do HC 399.109 é deveras perigoso, além de essencialmente equivocado. Embora reconheçamos haver o desafio de conciliar essa posição com a tese da própria Suprema Corte que excluiu o ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS, por não ser o imposto estadual parte da receita do contribuinte, há diversos argumentos que a nosso ver podem balisar uma decisão do STF no RHC 163.334 em favor dos contribuintes (contra a criminalização da inadimplência fiscal) no dia 11. Entre eles, destacamos:

a) Desvio da finalidade do legislador, que era a punição do ato de deslealdade com o terceiro de boa-fé (não com o Erário): o “sujeito passivo” mencionado pelo art. 2º, II, da Lei 8.137 só pode se referir àquele na condição de responsável tributário

A decisão do STJ parte de uma premissa técnica equivocada, eis que não cabia avaliar o tema em relação a tributos devidos pelo próprio contribuinte. De fato, a norma nunca quis se referir a tributos que não os devidos na condição de responsável tributário. Este é o sentido que deve ser dado ao termo “sujeito passivo”. Tanto assim o é que durante o processo legislativo discutiu-se redação mais arrojada, tendo prevalecido a atual, justamente para se evitar aquela aplicação elástica.

Na apropriação indébita os recursos são detidos pelo sujeito passivo a título lícito, mas ocorre um desvio e o devido recolhimento aos cofres públicos não ocorre. Tenta-se punir o ato de deslealdade de responsável perante o terceiro de boa-fé, não o ato de deslealdade de contribuinte para com o Estado – que é punível como crime apenas no caso de sonegação, sob outro tipo penal, em que se exige haja fraude.

b) O destaque do ICMS próprio na nota não tem finalidade de repassar ao adquirente o ônus legal do tributo

A decisão do STJ parte do pressuposto de que o ICMS próprio, por ter sido destacado na nota, foi “cobrado” do adquirente, terceiro de boa-fé, e que por isso ocorreu a apropriação indébita pelo inadimplente perante o fisco. 

Contudo, o ICMS próprio é destacado na nota como mera técnica de arrecadação. Tanto assim que os tribunais já reconhecem que, raríssima exceção à parte, apenas o contribuinte de direito tem legitimidade para requerer a repetição do imposto, que também fica alheio ao tratamento especial das entidades imunes, quando adquirentes de mercadorias. Diferentemente, o ICMS-ST é sim verdadeira e juridicamente arcado pelo adquirente, podendo ser alcançado pelos termos pretendidos pela Lei 8.137/1990, pois aí sim haveria apropriação indevida.

Nem caberia atribuir ao termo “cobrado” o sentido usado pelo relator do STJ. Afinal, o adquirente da mercadoria sempre suporta o ônus financeiro de todos os tributos devidos pelo vendedor (que os considera na formação do preço), mas esse não era o objetivo buscado pela norma penal. Apenas aqueles tributos efetivamente devidos pelo próprio adquirente mas antecipados ao Erário pelo vendedor, e por isso destacados ou retidos, são passíveis de configurar o tipo penal em questão.

c) Impossibilidade de se provar não haver dolo de se apropriar de recursos quando há inadimplência

Há completa impossibilidade de se diferenciar o suposto crime de apropriação, nos moldes dados pelo STJ, de qualquer inocente inadimplemento fiscal. O voto vencedor tenta fazer essa diferenciação referindo-se ao elemento “dolo do contribuinte” – seria o ato volitivo de se apropriar do ICMS devido que configuraria o crime.

Contudo, como o julgado não tece detalhes nesse importante tópico, na prática seria impossível o contribuinte provar que seu inadimplemento não configuraria em alguma medida tal dolo – afinal, a simples conduta de não recolher os valores ao Erário, mantendo-os ou mesmo destinando-os a outro fim, sempre acaba por equivaler a apropriar-se de tal numerário. Logo, por mais exagerado que soe, bastaria o atraso do ICMS próprio para que o crime ocorresse e o contribuinte pudesse ser processado, o que nitidamente não é nem de longe a melhor interpretação da norma.

d) Conflito com jurisprudência pacificada na Primeira Seção do mesmo STJ

A decisão do STJ também se choca com o entendimento já há muito pacificado pela Primeira Seção do mesmo tribunal, responsável pelos temas tributários. Ali, já há mais de dez anos entende-se que a mera inadimplência fiscal de tributos próprios não autoriza a responsabilização solidária de sócios, pois não se trata de ofensa à lei. Aliás, poderiam também ser trazidos outros precedentes, do STJ e mesmo do STF, apontando para diferenças fundamentais entre ilícito penal e inadimplência fiscal.

e) Prisão civil por dívida

O julgado também poderia ser atacado no que se refere à indevida autorização de punição com pena de prisão por mera dívida, eis que não há o elemento fraude. Além do art. 5º, LXVII, da Constituição proibi-la, o Brasil é parte do Pacto de San José da Costa Rica, que a inviabiliza e, portanto, afastaria a interpretação adotada no HC em questão.

f) Contrassenso: inexistência de crime quando não há recursos financeiros arrecadados pelo contribuinte em mora

Ademais, a prevalecer a lógica do julgado, de que o contribuinte estaria se apropriando de valores cuja titularidade é do Estado, não haveria crime nas situações em que o acusado simplesmente não possui os recursos financeiros “cobrados” de seus clientes, seja porque estes estão também inadimplentes com o fornecedor, seja porque o prazo de vencimento do tributo ocorreu antes do prazo de adimplemento daquela obrigação entre particulares.

g) Cenário extremo: realização de milhões de atos criminosos

A demonstrar o equívoco magistral do julgado, veja-se que o entendimento do STJ poderia também ser utilizado para defender uma conclusão insólita: a de que qualquer inadimplência seria crime, mesmo que a dívida seja confessada, bastando que o tributo em questão tenha sido informado na nota fiscal ou documento de cobrança equivalente! Neste ínterim, recorde-se que a Lei 12.741 determina, desde 2013, que “deverá constar, dos documentos fiscais ou equivalentes, a informação do valor aproximado correspondente à totalidade dos tributos federais, estaduais e municipais, cuja incidência influi na formação dos respectivos preços de venda.” Mesmo pequenas dívidas dos milhões de contribuintes sujeitos ao SIMPLES poderiam ser objeto de denúncias criminais, ainda que fraude alguma tenha ocorrido! Obviamente, esta não é a melhor interpretação da Lei 8.137/1990.

h) Confusão entre crimes materiais e crimes formais

Percebe-se que a maioria dos ministros da Terceira Seção do STJ perpetrou uma confusão, aplicando uma lógica de crime material (focando no resultado: falta de arrecadação) a um crime formal (que busca punir condutas: deixar de repassar ao Estado o tributo descontado ou cobrado, na qualidade de responsável). Não há elemento que suficientemente sirva para diferenciar o criminoso do empresário de boa-fé em mora!

i) “Ativismo judicial”: criação de tipo penal com ofensa à separação de poderes

Por fim, entre todas as críticas passíveis de serem lançadas sobre a decisão, a talvez mais preocupante se refere ao indevido uso do processo judicial como fonte de novos tipos penais. O relator do caso no STJ faz um esforço considerável para defender seu raciocínio, alertando para a importância de se proteger a arrecadação, o que parece mais uma exposição de motivos de nova norma do que um arrazoado sobre o julgamento de lei já existente.

Tradicionalmente, entende-se que a lei nunca buscou criminalizar a mera inadimplência fiscal. Sempre foi entendido que deveria haver algum ato de fraude possibilitando a redução do ônus para que houvesse sonegação punível como crime. Se não, o que há é mero atraso, passível apenas de multa e encargos de mora.

De fato, como se observa na Lei 8.137/1990, pune-se o crime material de “suprimir ou reduzir tributo” (art. 1º), mas sempre quando mediante condutas clandestinas (“omitir informação”, “prestar informação falsa”, “fraudar a fiscalização”, falsificar ou alterar … documentos”, entre outras). Ou seja, se não houve declaração falsa ou omissão do contribuinte (que não a de proceder com o recolhimento), não haveria o crime previsto no art. 1º (e no inciso II do art. 2º, entende-se).

Já o artigo 2º, II, da mesma lei prevê como crime o ato de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Novamente, o legislador não buscava criminalizar a inadimplência, mas a quebra de confiança perpetrada pelo particular que desconta ou cobra valores de terceiros e não os repassa ao Erário. Veja-se: há ausência de recolhimento, e o tributo estaria inclusive declarado, mas ainda assim haveria crime por conta do não repasse daquilo que foi arcado por terceiro de boa-fé.

Nenhum dos casos se refere a simples atraso de imposto próprio devidamente declarado. De um lado, a previsão do crime material do artigo 1º (que depende do resultado sonegação) visa proteger a arrecadação estatal em si (contra fraudes, destaque-se); do outro, o crime formal (que depende da conduta de deixar de repassar os valores arrecadados de terceiros) do artigo 2º, II, visa criminalizar o ato desleal de não repassar encargo a princípio devido e suportado por terceiros.

Justamente por isso era até hoje comum no empresariado o sentimento de que deixar de repassar contribuições previdenciárias devidas por empregados e retidas na fonte é algo muito mais grave do que deixar de recolher o próprio imposto. Afinal, embora o crime material de sonegação seja mais severo (tenha pena maior) que o crime formal de apropriação, só haveria efetiva sonegação quando houvesse, além da falta de pagamento, omissão de informações, enquanto o crime formal de apropriação poderia existir ainda que o empresário tivesse declarado o tributo descontado e não pago.

Na prática, embora com penas diferentes, o julgado do STJ joga na vala da criminalidade condutas muitíssimo diferentes: sonegar (mediante fraude) e atrasar o pagamento de tributo próprio confessado como devido. Com isso, permitiu-se que, além da correta cobrança pelo fisco, o contribuinte em dívida possa ser processado criminalmente, o que revela uma elasticidade nunca imaginada da norma penal.

Por todo o acima, entendemos que o STF deva reverter o veredito de 2018 do STJ e afastar essa ameaça da vida de todos os contribuintes de boa-fé. Contudo, infelizmente, essa não é uma certeza.

SEGUNDO CENÁRIO: MANUTENÇÃO DO VEREDITO DO STJ – A CATÁSTROFRE DA CRIMINALIZAÇÃO DA MERA INADIMPLÊNCIA FISCAL

Por mais aterrorizador que soe, a verdade é que a manutenção, pelo STF, da criminalização decidida por maioria no STJ é um dos cenários possíveis.

De fato, por meio de descabida justificação equivocadamente travestida de interpretação (v. item “i”, acima), podem os Ministros concordar que o espírito da lei e da Constituição permitiriam a perseguição penal de contribuintes em dívida, eis que, a ausência de arrecadação gera malefícios à sociedade condenáveis como crimes.

Nessa hipótese, a palavra catástrofe não seria um exagero para descrever os efeitos da decisão: ela autorizaria o Ministério Público a propor ação penal em qualquer caso de atraso no pagamento de tributos entendidos como “cobrados” (repassados) a terceiros, mesmo que declarados e sem fraude presente. Considerando que o crime em questão seria o do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, o prazo que o órgão dispõe para tanto seria de quatro anos, contados desde o vencimento do tributo.

Ademais, por se tratar de tributo declarado pelo próprio contribuinte (confessado como devido), nesse cenário sequer caberia o procedimento de constituição definitiva do crédito tributário, de modo que, ao contrário do que ocorre em relação aos crimes materiais de sonegação (art. 2º, I, da mesma Lei 8.137/1990), não haveria a necessidade de se aguardar o encerramento tal fase. Em outras palavras, o MP poderia atuar imediatamente ao atraso verificado.

Aliás, mantendo o STF o veredito do STJ, em qualquer caso de inadimplência confessada, ainda que surjam teses passíveis de serem exploradas em favor do contribuinte, este pode ficar com receio de discuti-las, justamente em virtude da responsabilidade penal pelo não recolhimento, o que indiretamente acaba por ferir seu direito de defesa.

Caberia aos contribuintes que venham a ser processados o natural direito ao contraditório, mas este é severamente comprometido na hipótese de tributo confessado como devido e não pago. Como tábua de salvação, haveria a alternativa de recolhimento do tributo em atraso, o que, nos termos de julgados anteriores, extinguiria a punibilidade a qualquer tempo – ao menos para os crimes materiais, o que, embora tecnicamente não seria o caso, pode ser defendido como aplicável ao crime de “apropriação indébita tributária” de tributo próprio criado no HC 399.109.

Mas o quanto esse apocalítico segundo cenário seria factível? Infelizmente, já tivemos sinais de que não seria algo impossível, especialmente pela conhecida postura arrojada do Ministro Barroso, relator – postura essa muito elogiada por alguns como moderna, mas por outros severamente criticada como desvio e invasão de competências.

Aliás, em maio passado o Ministro Barroso ouviu representantes das partes e algumas entidades admitidas no processo. Apesar de não ter se tratado de autêntica audiência pública, eis que apenas parte dos inúmeros interessados no veredicto pôde ser ouvida, a realização do encontro aberto foi fundada justamente na relevância do caso. 

Para terror dos contribuintes, ao final do evento o Ministro Barroso afirmou que a exacerbação do direito penal “talvez (frise-se: talvez!) não seja o caminho ideal nas circunstâncias atuais do Brasil”, mas, conforme relatado pela assessoria de imprensa do tribunal, “ponderou que o não recolhimento dos impostos, embora possa ser um bom negócio para quem o pratica, é altamente prejudicial ao país e que a criação de vantagens competitivas para quem não age corretamente também não é desejável.”

TERCEIRO CENÁRIO: POSSÍVEL DECISÃO SALOMÔNICA – CRIMINALIZAÇÃO APENAS DE DEVEDORES CONTUMAZES

Como visto acima, os cenários antagônicos defendidos pelos particulares e pelas Procuradorias e Ministério Público permitiria apenas uma de duas possíveis conclusões: há ou não há crime de apropriação indébita na mera inadimplência de tributo próprio declarado pelo contribuinte, sem ocorrência de fraude.

Contudo, já há alguns anos vem ganhando tração nas cortes brasileiras e mesmo em legislações fiscais de diversas unidades da federação o conceito de devedor contumaz, o qual abre uma terceira via para o STF: a criminalização da mera inadimplência ocasionada apenas por aqueles contribuintes tidos como da pior estirpe.

O conceito de devedor contumaz foi sendo construído com base na infeliz experiência de diversos setores com concorrentes desleais que faziam da inadimplência fiscal um modelo de negócios. Normalmente em mercados com alta carga tributária e apertadas margens de lucro, esses maus contribuintes faziam questão de declarar os valores devidos ao fisco para fugir da ocorrência de fraude e consequente tipificação criminal de sonegação. Ao mesmo tempo, contudo, não havia o recolhimento dos tributos confessados como devidos e essa apropriação dos valores não arrecadados pelo fisco permitia o acúmulo de caixa equivalente a diversos períodos de lucro (dada a apertada margem do setor), impondo uma injusta concorrência perante os contribuintes devidamente em dia com suas obrigações tributárias.

Para coibir essa conduta nitidamente desrespeitosa, para dizer o mínimo, diversas iniciativas foram sendo adotados pelos órgãos responsáveis pela cobrança da dívida ativa, eis que não raro o valor do passivo acumulado pelo particular acabava se mostrando irrecuperável, seja pela intervenção de empresas de fachada, ocultação de patrimônio e outros artifícios – esses sim criminalmente tipificados – somentea mais tarde descobertos pelo fisco. 

O conceito de devedor contumaz foi então passando a ser aplicado para definir aquele contribuinte que, embora inicialmente não sujeito às penas severas da lei criminal, já demonstra comportamento perigoso que, embora devedor confesso, não se confunde com ocasional e temporária inadimplência. Legislações estaduais passaram a exigir garantias e maiores contrapartidas para que a atividade em questão possa ser exercida, havendo também casos de alteração de vencimento de impostos e mesmo a exigência de que clientes exijam comprovantes de recolhimento de tributos para que a outrora natural apropriação de créditos possa ocorrer pelo terceiro de boa-fé.

O Poder Judiciário tem reconhecido a legitimidade desses tratamentos diferenciados, assumindo que há na multidão de contribuintes níveis diferentes de adesão às regras fiscais que justificariam tratamentos igualmente diferenciados. A tendência se reafirma em programas de rating de contribuintes conforme seu nível de compliance fiscal, como o recente Nos Conformes, do governo paulista.

Seja nas exposições de motivos das normas em questão, seja nas decisões que validaram tal tratamento excepcional, percebe-se certa similitude com os argumentos usado pelo Ministro do STJ Rogerio Schietti Cruz, gravitando eles ao redor de um suposto conceito de justiça fiscal e suposto combate à odiosa perda de recursos públicos que prejudicam serviços essenciais como saúde, educação e segurança.

Com isso em vista, embora a nosso ver não haja espaço na Lei 8.137 para que a apropriação indevida seja assim interpretada, vemos como possível que no dia 11 de dezembro o STF julgue o RHC 163.334 com um veredito salomônico, reconhecendo que para os chamados devedores contumazes é possível a criminalização da mera inadimplência, usando para tanto os exatos argumentos da posição vencedora do STJ em 2018, os quais, repetimos, nos parecem essencialmente equivocados, por ausência de base legal.

CONCLUSÃO

Ao tentar punir a mera inadimplência como se tratasse de apropriação indevida de valores devidos ao Estado, o julgado do STJ de 2018 fez terra arrasada da norma penal, na prática equivalendo qualquer inadimplência a crime. No julgamento do próximo dia 11 de dezembro, o STF não deveria ter outro caminho que não a reversão do veredito e o reconhecimento de que não há na Lei 8.137 espaço para a perseguição criminal de devedores de tributos próprios por eles mesmos confessados – i.e., sem ocorrência de fraude.

Contudo, a despeito de a maior crítica ao julgado do STJ decorrer do caráter eminentemente ativista da decisão, que mais se parece com a exposição de motivos de projeto de lei que com o arrazoado interpretativo das normas já existentes, considerando tendência similar no STF, em especial nos votos do Ministro Barroso, relator do caso, vemos como concreta a possibilidade de a suprema corte vir a decidir que a responsabilização criminal possa ocorrer em relação aos chamados devedores contumazes, ratificando a tendência de se qualificar os particulares pelo nível de compliance fiscal, impondo aos detentores de pior rating tratamento mais severo.

Matheus Bueno Oliveira
Sócio de Bueno & Castro Tax Lawyers
LL.M. Taxation, Georgetown, Washington D.C.
Certificate in International Taxation, Georgetown, Washington D.C.
Pós graduado em Direito Tributário e Direito Tributárui Internacional pelo IBDT
Graduado em Direito pela USP

  1. Artigo publicado anteriormente no JOTA.